O sequestro da Europa

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O cenário geopolítico na Europa prenuncia importantes mudanças quando o presidente eleito Donald Trump tomar posse em 20 de janeiro. Ele tem sinalizado que negociará com o presidente Vladimir Putin o fim do conflito na Ucrânia. O governo russo já respondeu que está pronto para negociar sem pré-condições. Essa dinâmica levanta questões sobre a ausência de iniciativas europeias para evitar ou negociar o término de um conflito limitado em solo europeu, que tantos prejuízos têm causado à Europa, e realça uma dependência preocupante das questões da segurança europeia em relação à liderança dos EUA.

Uma hipótese que emerge dessa situação é que quem manda na segurança europeia são os Estados Unidos da América, principalmente, por meio da NATO. Essa organização foi instrumentalizada pelos EUA para manter a segurança europeia dependente dos norte-americanos, perpetuando uma moldura na qual a Rússia permanece como ameaça em potencial desde o fim da Guerra Fria. Essa dinâmica tem como objetivo limitar que a cooperação com a Rússia contribua para que a Europa se torne um centro de poder que possa se colocar da maneira mais autónoma em relação aos EUA. Assim, se pode afirmar que a “NATO foi mantida após a Guerra Fria para deixar a Rússia fora, os americanos dentro e a Europa contida.”.

Além da Rússia, os EUA passaram a ver o crescimento econômico da China como outra ameaça. Em 2017, Trump, na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, colocou a Rússia e a China na lista de “países revisionistas... que ameaçam o poder norte-americano.” Em 2024, na Cimeira comemorativa dos 75 anos da Organização, o presidente Joe Biden conseguiu que a Rússia fosse nomeada como a “mais significante e direta ameaça para a segurança dos países da NATO”, apesar das limitadas capacidades militares convencionais russas realçadas no conflito com a Ucrânia. Na Cimeira, a China também foi considerada como “um desafio para os interesses, segurança e valores” dos países membros. Ou seja, a Europa tem sido sequestrada para defender os interesses norte-americanos com a narrativa de que ela está constantemente ameaçada, justificando a proteção dos EUA e o aumento nos gastos em defesa pelos países europeus.

Em 2023, segundo o Departamento de Defesa norte-americano, foi estabelecido um recorde de vendas de material de defesa dos EUA, especialmente para parceiros e aliados europeus. Agora, Trump exige que os países membros da NATO gastem 5% do PIB em defesa, o que seria maravilhoso para o complexo industrial militar dos EUA e péssimo para a economia europeia.

Além do mais, Trump retoma a ideia de comprar a Groenlândia, um território dinamarquês autônomo ou tomá-la pela força “caso seja necessário”. Ou seja, ameaça a Dinamarca, um país membro da NATO, que teoricamente deveria ser protegido pelos EUA, conforme estabelecido no Tratado do Atlântico Norte.

O retorno de Trump aliado aos donos das big-techs, como Elon Musk, acrescenta, também, outros desafios e tensões para a Europa no campo político e econômico. Elon Musk, com o apoio do presidente norte-americano eleito, decidiu se intrometer na política doméstica do Reino Unido, apoiando o partido populista de direita Reform UK, e incentivando ações que contribuam para destituir o primeiro-ministro do Partido Trabalhista daquele país. Em outro movimento, Musk resolveu intervir na política doméstica da Alemanha e apoiar mais enfaticamente o partido de extrema-direita alemão AfD. Ou seja, a estratégia dos EUA com Trump tem como um dos seus objetivos apoiar as big-tech norte-americanas nos embates comerciais e regulatórios na Europa e usá-las para favorecer partidos de direita e extrema-direita alinhados com os interesses norte-americanos.

Manter uma excelente relação com os EUA é fundamental para a Europa, mas adotar políticas contrárias aos próprios interesses nacionais dos países europeus para alinhar-se aos interesses norte-americanos é insensatez política. A Europa necessita analisar criticamente a dependência estratégica em relação aos EUA, e buscar os caminhos para se tornar um novo polo de poder unido, prospero e mais independente.

Antonio Ruy de Almeida Silva. Almirante. Doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Pesquisador-Sénior do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense. Membro do Grupo de Avaliação da Conjuntura Internacional (GACINT/USP). Autor do livro A Diplomacia de Defesa na Política Internacional.

Danilo Marcondes. PhD em Relações Internacionais pela Universidade de Cambridge. Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil (CNPq).

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