O segredo de Inácio Ferreira

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Primeiro que tudo, recomendo a leitura de O Segredo de Lourenço Marques. E foi a propósito deste romance que, numa entrevista a Eduardo Pires Coelho, perguntei sobre a escolha do nome Miguel Ferreira para a personagem de um português de Moçambique que se envolve nas Guerras Bóeres da passagem do século XIX para o XX, sendo que Ferreira é um apelido comum entre os descendentes de holandeses que se fixaram no que é hoje a África do Sul há quase 400 anos.

“Escolhi esse apelido propositadamente para, de alguma forma, evidenciar isso mesmo. Conta-se que o primeiro Ferreira na atual África do Sul foi o Inácio Ferreira, um náufrago português do século XVIII, e o apelido continua a ser relativamente comum no país. Posso adiantar três exemplos interessantes: 1) Joanesburgo foi fundada como cidade mineira no final do século XIX e o primeiro acampamento chamou-se Ferreiras Kamp. Ainda hoje esse nome se mantém no centro da cidade; 2) um dos jogadores da atual seleção sul-africana de cricket é o Donovan Ferreira; 3) um dos autores sul-africanos que li para a elaboração deste romance foi o Ockert Ferreira, que escreveu um livro muito especial sobre a presença dos refugiados bóeres nas Caldas da Rainha entre 1901 e 1902”, explicou-me Eduardo Pires Coelho, que vai já no terceiro romance (publicou antes O Segredo da ‘Flor do Mar’ e Taprobana), mas que trabalha na área financeira e viveu vários anos na África do Sul, país que conhece bem.

Mais não fosse por ser eu também um Ferreira, mas igualmente por ser um colecionador de histórias de portugueses pelo mundo, procurei saber um pouco mais sobre Inácio Ferreira, descrito pelo entrevistado como um “náufrago do século XVIII”.

Hoje vivem várias centenas de milhares de portugueses e lusodescendentes na África do Sul. Muitos são oriundos de Moçambique e até de Angola, países que deixaram no momento da independência em 1975, e certamente há famílias Ferreira entre eles.

Ao longo dos séculos, de facto, a prosperidade sul-africana foi atraindo portugueses e, num livro que publiquei em 2019, com o título Encontros e Encontrões de Portugal no Mundo, contei a história de Maria Ramos, uma lisboeta cuja família se instalou na África do Sul ainda no tempo do Apartheid, começou a colaborar com o ANC quando trabalhava na banca e acumulava diplomas no estrangeiro e, já com Nelson Mandela como presidente de uma África do Sul democrática e multirracial, chefiou o Departamento de Finanças do Governo. A revista Forbes chegou a incluí-la na lista das mulheres mais influentes de África.

Também é interessante o caso de Fernando Duarte, o empresário que lançou a Nando’s, hoje uma cadeia internacional de restaurantes de frango na grelha, muitas vezes descrita como sendo sul-africana, mas cujo símbolo, um Galo de Barcelos, dá uma excelente pista sobre a origem portuguesa do fundador.

De Inácio Ferreira sabe-se que nasceu em Lisboa em 1695. Tornou-se marinheiro e quando naufragou, em 1722, junto a esse Cabo da Boa Esperança (batizado assim depois da passagem de Bartolomeu Dias, em 1488) fazia parte da tripulação do navio inglês Chandos, que vinha da Índia.

Integrou-se bem junto dos bóeres, palavra que quer dizer “fazendeiros”, e depois de durante uma década ser soldado, casou-se com Martha Terblanche e tornou-se ele próprio um verdadeiro fazendeiro, criando uma dezena de filhos. Depreende-se que, além do inglês - que aprendera ao serviço da Marinha Inglesa -, falava o africâner, língua derivada do holandês que ainda hoje é o idioma de uma parte substancial da população branca sul-africana.

A maioria dos filhos de Inácio com Martha eram rapazes, com nomes como Ignatius ou Petrus, e esse foi o segredo da multiplicação do número de Ferreiras entre os bóeres, na sua grande maioria com apelidos holandeses ou huguenotes (protestantes franceses que encontraram acolhimento entre os calvinistas instalados na região do Cabo). Inácio Ferreira morreu em 1772, em Gouritsriver.

O mais curioso, e isso diz muito sobre como os portugueses andaram pelo mundo, é que noutras comunidades sul-africanas também pode haver nomes portugueses. Por exemplo, o marido de Maria Ramos, um dirigente do ANC que chegou a ser ministro das Finanças ao serviço de três presidentes, chama-se Trevor Manuel e a lenda que corre na família conta que têm esse apelido porque descendem de um português que se casou com uma negra sul-africana. Qual será o segredo desse lendário Manuel?

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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