O ruído das bombas não impede que se discuta com o agressor

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Embora a área das relações internacionais ande virada do avesso, não seria de esperar que as conversações entre a Ucrânia e a Federação Russa se iniciassem ao nível dos dirigentes máximos destes países. Um processo desse tipo começa por encontros diplomáticos entre os enviados especiais de cada uma das partes. Com o tempo, passa para o patamar político, envolvendo ministros. E só quando se está muito perto de um acordo é que a negociação culmina num frente-a-frente entre os líderes respetivos. O que tiver sido decidido nas diferentes fases das conversações só fica definitivamente resolvido quando aprovado nessas cimeiras.  

Tentar começar o processo por uma reunião entre Vladimir Putin e Volodomyr Zelensky soava a uma jogada política inconsequente. Não diria que se tratava de uma cartada decidida por um amador, por Donald Trump. Não quero acreditar que o círculo que aconselha Trump o tivesse convencido que a presença em Istambul ao mais alto nível permitiria avançar no sentido da paz. Trump vive num mundo ilusório, acredita nos seus dons excecionais, mas neste caso, já percebeu que Putin é um osso duro de roer, um chefão pide com décadas de experiência. O presidente russo nunca estaria presente numa reunião tão sensível, a não ser que a iniciativa viesse do seu lado. Putine não quer mostrar que anda a reboque de Trump, nem de ninguém.  

As conversações são essenciais para encontrar uma solução duradoura para a guerra de invasão iniciada pela Rússia. No caso presente, estamos, todavia, longe de um processo de paz. Uma das partes, a russa, está convencida que pode ganhar o máximo de vantagens com a continuação da guerra. A agressão tem sido mais complicada que inicialmente previsto, quando a invasão foi decidida no Kremlin, mas os seus responsáveis acreditam que a força está do seu lado e que o tempo lhes permitirá ir para a mesa das negociações, um dia, com mais trunfos na mão e sobretudo na manga. Por isso, quando Moscovo fala de cessar-fogo e de paz, é apenas conversa astuta e fiada, para entreter Washington, e contrariar a Europa e a comunidade internacional.  

Trump adora acreditar nos dirigentes russos. E quer continuar a importar da Rússia urânio enriquecido, adquirido pelo Kremlin no Cazaquistão, que produz acima de 40% do mineral, para depois ser tratado nas instalações nucleares russas. Trump tem de compreender, todavia, que só conseguirá contribuir para uma paz justa se continuar a apoiar a Ucrânia. Sem essa ajuda, a Ucrânia será obrigada a prosseguir a luta pela sua sobrevivência, com custos enormes. E a Rússia ficará cada vez mais persuadida que as questões internacionais se resolvem com mísseis supersónicos e milhares de drones. Ganhará pontos na sua aliança com a China de Xi Jinping. Essa aliança é um perigo, por se tratar de uma coligação de ditaduras, de regimes que não respeitam os direitos humanos e as liberdades democráticas.  

E Putin acabará por se imiscuir ainda mais na política interna dos países da União Europeia, de modo clandestino ou aberto. A crise ucraniana permitiu aos senhores do Kremlin aprofundar a cultura de hostilidade contra o resto da Europa. Estão convencidos que são um povo superior. 

Na Europa democrática, a russofobia é um fenómeno marginal. O que existe é medo. Medo da mentalidade imperialista que inspira as decisões do Kremlin, medo do culto da personalidade, da ditadura e da corrupção que cria as classes oligárquicas, medo de um país que investe 32,5% do orçamento público em armas e soldados – oficialmente, 126 mil milhões de USD.    

Macron, Merz, Starmer e Tusk, entre outros, têm razão quando falam de um cessar-fogo temporário. Um momento de tranquilidade é preferível às centenas de drones e mísseis que os russos estão a lançar diariamente sobre a Ucrânia.  

Três observações parecem, no entanto, necessárias. 

Primeiro, o conteúdo do próximo pacote de sanções, o 17º a adotar pela UE, tem de incluir uma perseguição mais eficaz dos cinquenta e poucos navios fantasmas, os petroleiros enferrujados e ameaçadores do meio ambiente marítimo, que sub-repticiamente transportam petróleo russo para países que violam o embargo imposto aos russos. Deve igualmente incluir sanções contra esses países importadores.  

Segundo, é fundamental fornecer às forças armadas ucranianas sistemas de defesa antiaérea com a qualidade e a quantidade necessárias à defesa do seu país e do seu povo. 

Terceiro, a Europa deve reconhecer que é possível negociar, mesmo sem cessar-fogo. O ideal seria conseguir-se primeiro uma situação de tréguas. Mas atenção, a experiência mostra que os acordos de cessar-fogo tendem a prolongar indefinidamente os impasses existentes. Não queremos mais um conflito congelado na Europa. Por isso, é fundamental criar as condições necessárias para obter um acordo de paz, mesmo quando os mísseis russos continuam a destruir a vida quotidiana dos ucranianos e ameaçar a paz na Europa.   

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