O regresso da barbárie
"A história moderna é semelhante a um surdo que respondesse a uma pergunta que ninguém lhe faz."
Tolstoi, Guerra e Paz
Cada geração que assiste a uma carnificina julga que já viu todo o horror e não é possível imaginar algo pior. Quando Tolstoi evoca as campanhas de Napoleão, 60 anos depois de se terem desenrolado, não é a cavalgada do imperador através da Europa levando os estandartes da liberdade e da igualdade que ele nos conta. A memória que retemos de Guerra e Paz são os campos cobertos do sangue de milhões de pessoas (digo bem), a destruição, a violência gratuita, a perda. E este rol de selvajaria prossegue até aos nossos dias, tempos da tecnologia e dos avanços fulgurantes, que tornam ainda mais evidentes as diferenças entre mundos. Mas essas diferenças não significam caminhos sem retorno, como o caso do Afeganistão demonstra.
Têm circulado nas redes sociais imagens, e até caricaturas, sobre os efeitos do regresso dos talibãs na vida das mulheres. Nas duas últimas décadas, as mulheres foram decerto o grupo que beneficiou das poucas mudanças alcançadas em círculos restritos, visto que os talibãs continuaram a espalhar o terror fora dos centros urbanos. A luta pela libertação das mulheres vem de longe. No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, desenharam-se os primeiros esforços para diminuir as restrições sobre as mulheres afegãs. O rei Amanullah, que governou entre 1919 e 1929, promoveu a liberdade das mulheres na esfera pública e incentivou as famílias a enviar as suas filhas à escola. Em 1921, estabeleceu uma lei que aboliu o casamento forçado, o casamento infantil e até colocou restrições à poligamia, prática comum entre as famílias no Afeganistão.
Também a rainha, a única mulher que integrava o governo, introduziu reformas para melhorar a vida das mulheres, tendo sido uma das primeiras e mais poderosas ativistas do mundo muçulmano. Contudo, depois dessa tentativa precoce, seguiram-se décadas em que o Afeganistão continuou a ser dominado por tribos e os homens voltaram a dominar as mulheres. Em 1973, com a declaração da república, o Partido Democrático do Povo do Afeganistão, apoiado pela União Soviética, assumiu o governo. Nessa altura, as leis do casamento tradicional foram reformadas, houve incentivos à educação das mulheres e criaram-se leis para a sua proteção na saúde. Embora grande parte das mulheres tenha continuado excluída de todas as oportunidades, outras conseguiram exercer profissões como médicas, professoras, cientistas ou funcionárias públicas. Em 1977, Meena Keshwar Kamal fundou a Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão, mas acabou por ser obrigada a refugiar-se no Paquistão, onde foi assassinada, em 1987.
O resto da história já conhecemos: o apoio dos EUA aos mujahidin para afastar o governo apoiado pela União Soviética, a participação nessa guerra das milícias talibãs, que depois tomaram o poder no Afeganistão entre 1996 e 2001, deixando um rasto de terror e retrocesso civilizacional (recordemos os 55 mil livros e manuscritos queimados, alguns com mais de 10 séculos, retirados de uma das mais belas bibliotecas públicas do Afeganistão, ou a destruição dos Budas do Vale de Bamiyan, classificados como Património da Humanidade), a chegada americana depois do ataque às Torres Gémeas e, por fim, neste agosto de má memória, a sua precipitada retirada (e de seus aliados), depois de sigilosas negociações com os talibãs, que voltaram ao poder e esfumaram 20 anos de esforços internacionais em menos de 15 dias.
Achamos sempre que o regresso da barbárie apenas acontece aos outros, mas a história longa (quando a olhamos através dos séculos) mostra como tudo é precário. A ideia de progresso infinito foi uma ilusão evolucionista, dolorosamente substituída pela evidência de que a barbárie pode sempre regressar se não trabalharmos todos os dias para a evitar. A condição da mulher é um indicador do desenvolvimento das sociedades. Não é um problema apenas delas, mas de todos. Nada está conquistado, nada é definitivo. Esperamos que o Afeganistão não saia rapidamente dos nossos radares e mais uma vez nos conformemos acreditando que tudo aquilo fica longe e não toca o nosso mundo.
Diretora em Portugal da Organização de Estados Ibero-Americanos.