O regresso da "Arte Degenerada"

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Perfection, of a kind, was what he was after.

W.H. Auden, Epitaph on a tyrant

Uma recente “ordem executiva” (em português chamam-se decretos) do presidente dos Estados Unidos (a quem chamam também POTUS) delega noutra autoridade, o vice-presidente dos Estados Unidos, a tarefa de examinar e eliminar de todos os museus e centros de investigação do Instituto Smithsonian (mais de 20 museus e centros culturais em atividade) quaisquer obras ou projetos “impróprios, divisivos ou contrários à ideologia americana”. Mais ordena o corte de fundos federais a todas as exposições e todos os programas que “dividam os americanos por raças, géneros ou etnias”, proibindo quaisquer invocações a “diversidade, equidade e inclusão”.

Costuma ironizar-se com a banalização das referências a Hitler nas críticas a fenómenos e correntes contemporâneas, chamando-lhe a “reductio ad Hitlerum”. Mas estas decisões e iniciativas de Trump e Vance não podem deixar de nos recordar a famosa “exposição de arte degenerada”, promovida pelo poder nazi na Alemanha em 1937. A exposição mostrava 650 obras de arte confiscadas aos museus alemães, obras essas acusadas de “insultar os sentimentos alemães, destruindo ou confundindo as formas naturais”. As peças alvo destas acusações eram pinturas e esculturas cubistas, surrealistas e, muito particularmente, expressionistas. Era toda a arte moderna, de todas as correntes de vanguarda, eram obras de Grosz, de Klee, de Kirchner, de Nolde, e também de Picasso, Mondrian, Chagall e Kandinsky, que eram expostas para serem ridicularizadas e julgadas como mais um passo na “conspiração antialemã contra a decência e os bons costumes”. Hitler, o supremo crítico de arte na Alemanha de então, considerou estes artistas como “incompetentes, aldrabões e loucos” e decretou não haver lugar no seu “Reich de mil anos” para quaisquer “experiências modernistas”.

É evidente que o mundo de Trump não é o mundo de Hitler. Mas a diferença está nas radicais mudanças do último século nas tecnologias e nas sociedades, não no espírito ou na alma. Se considerarmos a cultura e a arte, se voltarmos o olhar para tudo o que nos diz a palavra “cultura”, torna-se visível uma comunidade de espíritos, que por certo abrangeria também Estaline a censurar Chostakovitch e a prender Mandelstam, e muitos outros ditadores e sátrapas a quererem reger as artes e as letras.

O importante é que as evidentes diferenças entre o trumpismo e os regimes fascistas existem e devemos evitar que a nossa análise os confunda e misture, mas têm uma comunidade, eu diria, espiritual com todas as ditaduras e totalitarismos da História.

Fernando Pessoa só se zangou definitivamente com Salazar quando o nosso ditador se lembrou de enunciar aquilo que os artistas deviam dizer, e não apenas aquilo que não podiam dizer. As ditaduras têm em comum um gosto terrível e perigoso por todas as manifestações de arte e de cultura. Estaline, aliás, era um grande leitor. Mais do que Trump.

Diplomata e escritor

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