O refúgio, a adrenalina e a lição beirã
É domingo, final de tarde. A lavagem automática está cheia. O pó que o carro acumulou nos últimos dias, em mais de dois mil quilómetros percorridos por estradas de Portugal e Espanha, desaparece perante a força impiedosa do jato de alta pressão. As últimas horas deste período de férias também parecem escoar-se à mesma velocidade. Mas à medida que o carro recupera o brilho da pintura metalizada, apego-me às memórias que ficam deste agosto de 2024 e que partilho neste Até Ver de verão.
O refúgio. Em 2009, visitei pela primeira vez a região a que gosto de chamar 'triângulo mágico' do Baixo Alentejo formado entre Mértola, Mina de São Domingos e Pomarão. Foi um caso de amor à primeira e de então para cá, todos os anos, faço questão de lá voltar, seja para uma estadia mais prolongada ou apenas um par de horas bem passadas. Naquele distante março de 2009, uma (sábia) recomendação da proprietária do alojamento onde pernoitava levou-me até aos Corvos, mais concretamente ao restaurante A Paragem, que desde esse dia se tornou ponto obrigatório desta espécie de peregrinação anual. Lembro-me bem do atendimento impecável que tive da parte do sr. Zé, que servia delícia atrás de delícia e me fazia sentir em casa, convertendo-me imediatamente num cliente fiel até hoje. Mais tarde, num dos regressos aos Corvos em família, recebemos a triste notícia de que o sr. Zé havia falecido. À frente da casa estavam agora os seus filhos - a simpatia no trato e a magia que era feita naquela cozinha permaneciam iguais.
Este ano, na Paragem, não vimos nenhum dos rostos familiares. Questionámos se estariam de férias e fomos informados que o restaurante tinha uma nova gerência. Após um breve sobressalto, perante a ameaça de termos perdido este nosso porto seguro, olhámos a carta e apontámos ao prato que seria o teste do algodão: as migas com secretos de porco preto. A esplanada cheia já era um bom sinal. O aroma da comida ao chegar à mesa despertou-nos os sentidos e a primeira garfada que levámos à boca tranquilizou-nos: a nossa referência gastronómica mantém-se intacta. A nova proprietária, sempre muito atenciosa, dirigiu-se a nós e perguntou se estava tudo bem. Num impulso, contámos-lhe como cada ida à Paragem era especial para nós. Não sei se notou nas nossas palavras o alívio que este jantar representou. Mais do que uma refeição, encontrámos, de novo, o conforto de um refúgio repleto de boas memórias.
A adrenalina. O prazer da descoberta chegou em Madrid. Não era a primeira visita à capital espanhola, mas a circunstância em que o fazia era completamente diferente das anteriores, que foram em trabalho ou a preencher uma dúzia de horas entre escalas de voos. Desta vez houve tempo. Tempo para ir ver Guernica de Picasso, tempo para 'ir de tapas', tempo para um longo passeio de final de tarde pelo parque de El Retiro. Madrid é magnífica e há que voltar. Mas, mais do que 'mergulhar' na cidade, o real motivo desta viagem era cumprir a promessa feita aos mais novos da família de passar um dia no Parque Warner. Ali, no meio de dezenas de montanhas russas que aceleram o batimento cardíaco, a maior dose de adrenalina chegou através de um gesto simples: segurar a mão do meu filho e ajudá-lo a superar os receios iniciais de experimentar as atrações mais radicais. Não há sensação mais intensa do que essa.
A lição beirã. A praia fluvial de Loriga, no município de Seia, já não é um segredo bem guardado. A água cristalina e enquadramento paisagístico num vale glaciar do Parque Natural da Serra da Estrela ganharam fama e destaque na comunicação social e nas redes sociais, pelo que o número de visitantes é cada vez maior. Isso nota-se bem nesta quente sexta-feira. O espaço está lotado, mas o que mais me chama a atenção é a mistura ruidosa de português e francês que se escuta por aqui – depois do ‘portunhol’, porque não instituir o ‘frantuguês’? – fruto da presença de dezenas de famílias de emigrantes que voltam às suas terras para o seu 'Querido Mês de Agosto'. Uma menina, que não tem mais de sete/oito anos, salta de uma rocha para a água e grita Vive le Portugal!, recolhendo aplausos e vivas de alguns dos presentes. Num país com mais de dois milhões de emigrantes, a ideia de que um imigrante é um adversário não devia ter hipótese de fazer caminho. Mas há quem o deseje e estimule essa visão do nós contra eles. Com agosto ainda a meio, a minha recomendação é que vá às Beiras e veja por si o absurdo que tal ideia representa. Não terá melhor lição do que essa.