A incidência dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual tem vindo a aumentar no nosso país, fruto também de maior sensibilização face ao tema e apelo à denúncia, numa lógica de tolerância zero face a esta forma de violência. No entanto, sabemos muito pouco sobre os contornos mais específicos das situações que são sinalizadas e o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) é, ano após ano, o espelho deste mesmo desconhecimento..Olhando agora para o RASI de 2023 - que em muito pouco difere dos anteriores, no que a esta questão diz respeito - e no que concerne aos crimes de natureza sexual, começamos por ter acesso aos dados relativos aos inquéritos iniciados por tipologia de crime, com a identificação dos três tipos de crimes com maior incidência - abuso sexual de criança, violação, e pornografia de menores..Temos depois informação demográfica (somente sexo e escalão etário), mas apenas em relação aos dois primeiros tipos de crimes (abuso sexual de criança e violação). Por fim, temos a indicação do contexto da relação em que estes dois tipos de crimes ocorrem, com a identificação de categorias muito genéricas (p. ex., “familiares” ou “conhecimento”)..Ou seja, após dedicarmos alguma atenção a esta secção concreta do RASI, percebemos que muito fica por saber, fruto de uma análise e apresentação dos dados que poderia ser muito mais aprofundada e, dessa forma, permitir um conhecimento mais abrangente sobre esta realidade..Eis algumas das (muitas) questões que ficam por responder:. 1. Relativamente aos restantes tipos de crimes (p. ex., abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, que teve 17 detenções, ou coação sexual de menores, com 12 detenções), o que se sabe? Quem foram as vítimas e os agressores? Em que contexto ocorreram estes outros crimes?. 2. A idade das vítimas em que se observa maior incidência dos primeiros dois tipos de crimes é o escalão etário entre os 8 e os 13 anos (como, aliás, tem vindo a acontecer ao longo dos últimos anos). Após os 13 anos de idade, com a entrada na adolescência, a incidência diminui. Mas verifica-se alguma diferença em função do sexo da vítima? Alguns estudos internacionais indicam que, após os 13 anos de idade, o risco tende a diminuir acima de tudo para os rapazes - mas não para as raparigas. É também esta a realidade em Portugal?. 3. Ainda relativamente às vítima de abuso sexual, percebemos que 6,3% têm uma idade compreendida entre os 0 e os 3 anos - falamos, portanto, de bebés e crianças muito pequenas. Por sua vez, 20,7% das vítimas têm 4 a 7 anos de idade. Ou seja, temos um total de 27% de situações em que a criança tem entre 0 e 7 anos. Estas situações - muito preocupantes - ocorrem em que contexto? Quem são os autores destes crimes? E de que comportamentos abusivos, em concreto, são vítimas estas crianças tão novas?. 4. Sobre os arguidos percebemos que, no total, foram detidas 4 mulheres - 2 por abuso sexual de crianças, 1 por violação e 1 por importunação sexual. Quais são as características destas mulheres, atendendo a que tão pouco se sabe sobre os crimes sexuais cometidos por pessoas do sexo feminino? De quem abusaram? Em que contexto e com que modus operandi?. 5. Vemos também na informação disponível que 11% dos arguidos têm entre 16 e 18 anos de idade - ou seja, estão ainda na fase da adolescência. Os restantes são maiores de idade. Novamente, as dúvidas: quem são as vítimas destes adolescentes e em que contexto ocorre o crime? Existem diferenças de abordagem à vítima em função da idade do agressor? E de entre todos os arguidos, qual é a percentagem daqueles que estão a reincidir no mesmo tipo de crime?. 6. Por fim, e porque a lista já vai longa (não porque não subsistam mais perguntas), e sobre os contextos da relação, o que foi entendido como contexto “familiar”? São apenas familiares com laços biológicos com a vítima? Ou também madrastas e padrastos, por exemplo? E quais as percentagens em função da natureza concreta da relação de familiaridade? As mesmas dúvidas podem ser colocadas em relação à categoria “conhecimento” ou “assistência e formação” - esta última categoria, por exemplo, envolve os crimes cometidos no contexto da educação e da Igreja? Ou estes são inseridos na categoria “conhecimento”?.Neste contexto, sublinha-se a necessidade de realização de um estudo de prevalência e de reincidência no nosso país, relativamente a estes tipos de crimes. Os crimes de natureza sexual merecem, ainda, um relatório autónomo, mais detalhado, à semelhança do que acontece com a violência doméstica..Um conhecimento mais aprofundado sobre os crimes de natureza sexual em Portugal revela-se fundamental, pois só dessa forma poderão ser definidas políticas e estratégias - preventivas e interventivas - mais ajustadas à realidade.