O que faz um líder

Publicado a

Uma das mais veementes críticas que têm sido feitas ao sistema judicial é a das fugas de informação - um dos alertas do Manifesto dos 50 pela reforma da Justiça -, que resultam tantas vezes em julgamentos populares e no arrastar da dignidade dos visados para um tormento pesado. O ex-ministro da Administração Interna e, na altura, um social-democrata em ascensão partidária, Miguel Macedo, inesperadamente falecido há duas semanas, passou por essas trevas, e nem depois de ter sido absolvido de todos os crimes pelos quais foi julgado no âmbito do processo “vistos gold”, quis voltar de novo à política.

Muitas críticas têm sido também feitas ao facto de as autoridades competentes, no caso o Ministério Público, depois de virem a público nomes de suspeitos num inquérito, demorarem muitas vezes uma eternidade a prestar esclarecimentos. Sabemos que os factos estão em segredo de justiça e que quaisquer informações podem prejudicar a investigação, mas a partir do momento em que os nomes são conhecidos por todos, não seria melhor clarificar o mais rapidamente possível?

Ora, nesta terça-feira tivemos um bom exemplo. Os nomes de Fernando Gomes, ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e novo presidente do Comité Olímpico Português (COP) e de Tiago Craveiro, ex-diretor-geral da Federação, foram apresentados pela SIC como sendo os dois principais arguidos de um inquérito que investiga suspeitas de corrupção, recebimento indevido de vantagem, participação económica em negócio e fraude fiscal relacionadas com a venda da antiga sede da FPF, em 2018, na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, por mais de 11 milhões de euros. Nessa manhã houve buscas e à tarde seria a tomada de posse de Fernando Gomes no COP, uma cerimónia com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Luís Montenegro.

Imagina-se o desprestígio que seria para o país ter o mais alto dirigente de uma organização mundial, alguém que, ainda por cima, é um nome respeitado no espaço desportivo internacional, a tomar posse com este anátema em cima? Simplesmente não era possível e, se tudo sucedesse como habitual, o seu nome iria continuar a ser grelhado nas chamas mediáticas.

É por isso que todas as críticas que possam ser feitas ao diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, sobre a sua intervenção intempestiva a dizer que nem Gomes, nem Craveiro eram objeto da investigação, caem por terra. Porque se a presunção de inocência vale até ao trânsito em julgado de uma sentença, a inocência, em si, tem de valer mais que tudo e é um dever preservá-la. Nem um, nem outro eram arguidos sequer. Nem alvo de buscas. Ardilosamente e maliciosamente alguém os queria mesmo queimar.

Luís Neves não suporta desinformação, sabemos, desconstruiu as narrativas que associavam imigração ao aumento da criminalidade (que afinal nem aumentou assim tanto, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2024), mas não só. Quem acompanha o seu percurso lembra-se bem de quando, contrariando todo o discurso que se estava a disseminar de que o duplo homicídio no centro islamita perpetrado por um refugiado afegão era um ataque terrorista, Luís Neves deu a cara e afastou essa tese, apontando um surto psicótico como causa, o que se veio a comprovar em tribunal. Sem essa intervenção e não estacando o discurso de terrorismo, o efeito para a imagem de Portugal seria igualmente desastroso. O país passaria a surgir como palco de terrorismo.

Claro que é um enorme risco fazer estas declarações, bem como as que fez no COP, enquanto há investigações a decorrer. Mas quem lidera corre riscos. Quem é líder corre riscos, assume erros, corrige-os. Por causas superiores, é isso que se espera de um líder. Não que vire a cabeça para o outro lado e apenas salve a própria pele.

Diretora adjunta do Diário de Notícias

Diário de Notícias
www.dn.pt