O príncipe solto da lei
O perdão presidencial de Donald Trump a acusados e condenados pelos crimes associados ao ataque ao Capitólio de 2021 é um excelente exemplo da falta de pudor institucional que se instalou em diversos pontos do mundo. Mais de 1500 pessoas foram perdoadas pelos seus crimes cometidos, nomeadamente, contra polícias que procuravam defender os membros do Congresso e as instalações. Dois agentes morreram em 6 de janeiro de 2021 e mais de 140 ficaram feridos, recorde-se.
O perdão ou a comutação de crimes e penas é um dos sinais tradicionais do exercício do poder ao longo da História, independentemente do que se possa pensar sobre isso, em pleno século XXI, e sobre a sua legitimidade em tempos de separação de poderes.
O grave, neste caso, é que este é um perdão que se inclui num processo de reescrita da História a favor dos recentes vencedores e é um perdão que afronta diretamente o Estado, as instituições políticas e o respeito pela legalidade.
Descrever condenados por ofensas à vida e à integridade física de polícias - que defendiam as instituições políticas de uma invasão - como “reféns patriotas”, o que Trump fez na recente campanha eleitoral, e anular a sua responsabilização no primeiro dia de mandato é, no mínimo, um abuso de linguagem e uma péssima interpretação dos poderes presidenciais. E é um convite à violência e à sua legitimação, de acordo com a conveniência de quem conjunturalmente exerça o poder.
A isso chama-se também anulação do Direito, a essa capacidade de escrever e usar regras constantes e indiferentes à qualidade das pessoas que as usam.
No pensamento político ocidental, antes da criação dos quadros jurídicos estaduais contemporâneos, a relação de um poder absoluto do governante com as limitações que o Direito estabelece foi, desde Roma, justificada pela ideia de que há um princeps legibus solutus, um governante “solto” das amarras da sua vinculação às suas próprias leis. No entanto, essa visão foi sendo mitigada pela própria conceção cristã do exercício do poder, que obrigava à autolimitação do governante por um imperativo moral, mesmo se não-jurídico.
O governante é um exemplo, um espelho - e, como tal, deve ser um bom exemplo para a sua comunidade. Mas... que exemplo, que espelho, que príncipe, que comunidade... pode pensar-se perante as imagens e as palavras das primeiras horas do novo Presidente dos Estados Unidos.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa