O provável fim da ordem liberal

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Os acontecimentos dos últimos dias tornaram evidente que a União Europeia terá de se tornar responsável pela sua própria Defesa. Porém, isto aconteceria mais tarde ou mais cedo, mesmo sem o atual presidente dos Estados Unidos. Na verdade, a eleição de Trump não é a responsável pelo fim da ordem liberal nascida do pós-guerra, mas antes uma consequência de uma falência que estava em curso há várias décadas. Esta ordem já estava a ser colocada em causa há pelo menos 25 anos, devido à invasão do Iraque, à ascensão imparável da China, à emergência do populismo nas democracias ocidentais (em parte devido à crise financeira de 2008 e ao impacto da globalização em certas camadas da população) e ao surgimento de um mundo multipolar, no qual os Estados Unidos deixaram de ser a “hiperpotência” que eram no final dos anos 90.

Neste contexto, a abordagem “transacional”, o isolacionismo e o “America First” de Trump simplesmente aceleraram um processo histórico. E há nas entrelinhas dos discursos de Trump uma realidade que uma análise atenta permite perceber. Diz respeito à necessidade que a sua Administração tem de cortar custos e reduzir a gigantesca dívida pública dos Estados Unidos, que já é superior a 34 biliões de dólares.

O serviço desta dívida custa cerca de um bilião de dólares por ano, um valor que tem aumentado de forma significativa nos últimos anos e já supera os gastos com a defesa. Neste contexto, as medidas protecionistas que o presidente americano está a implementar vão levar a um aumento da inflação, a qual, como sabemos, constitui uma forma de austeridade encapotada que, além de devorar as poupanças dos cidadãos, permite reduzir a dívida em termos relativos, em proporção do PIB, como vimos em Portugal nos últimos anos. Claro está que o aumento da inflação vai obrigar a novas subidas das taxas de juro por parte da Reserva Federal, aumentando ainda mais os custos com a dívida. No entanto, veremos de que forma Trump pretende lidar com a independência da Reserva Federal, tendo em conta que já defendeu, no passado, que as decisões de política monetária deveriam passar pelo crivo da Casa Branca.

Desta forma, enquanto anuncia reduções de impostos e aumentos nominais do rendimento das famílias, para ir ao encontro das suas promessas eleitorais, Trump está, ao mesmo tempo, a aplicar um remédio austeritário para lidar com o gigantesco problema de dívida dos Estados Unidos. Na prática, está a fazê-lo de duas formas: por via da inflação (que atribui às políticas do seu antecessor) e com cortes profundos nas agências federais, conduzidos por Elon Musk e outros colaboradores próximos.

O problema de dívida deve-se aos défices orçamentais que o país acumulou durante décadas para financiar um colossal orçamento de defesa que era necessário para, entre outras coisas, manter a hegemonia americana pelo mundo fora, Europa incluída. O que a frieza dos números demonstra é que, apesar da sua competitividade, a economia americana já não consegue continuar a financiar este estado de coisas indefinidamente, imprimindo dinheiro para manter um império com dezenas de bases e forças militares espalhadas pelo mundo. As declarações de Trump, esta semana, em defesa de um acordo com a Rússia e a China para reduzir para metade os respetivos orçamentos de defesa são mais um indício de que o atual estado de coisas não é sustentável.

JIM LO SCALZO / POOL

O isolacionismo de Trump é, por isso, também o reflexo de um esforço para tentar gerir o declínio relativo dos EUA, procurando transformar o país numa espécie de fortaleza invulnerável às ameaças externas que possam surgir, sejam elas a imigração ilegal, a concorrência desleal da China ou as balanças comerciais deficitárias com o Canadá, o México e a União Europeia.

A comparação não será propriamente exata, porque são casos muito diferentes, mas o que os Estados Unidos estão a fazer tem algumas semelhanças com aquilo que o Reino Unido e a França fizeram nos anos 50 e 60 do século passado, já para não falar de outros impérios mais antigos, como a Espanha dos Habsburgos. Ao mesmo tempo que descolonizavam, França e Reino Unido investiam no Concorde, na bomba atómica e em armas topo de gama para se manterem relevantes num mundo onde já estavam a ficar para trás.

Com as devidas diferenças, para começar porque ainda não há alguém que realmente os substitua, os EUA são hoje uma potência em retirada relativa do palco mundial, por opção de Trump, mas também por necessidade. Isto embora continuem a ser a maior economia e não desistam de ter uma palavra decisiva naqueles temas que são realmente decisivos para o seu futuro nas próximas décadas, como a emergência da Inteligência Artificial, o controlo de posições estratégicas no Médio Oriente e a contenção da China na Ásia-Pacífico.

Ainda não sabemos qual o resultado desse processo, mas é provável que os Estados Unidos saiam mais fortes, até porque estão bem posicionados para enfrentarem o impacto da guerra comercial - e Trump sabe disso. Porém, mesmo que a economia melhore nos próximos anos e os democratas regressem ao poder em breve, dificilmente voltarão à política internacionalista de outrora, quer pelas referidas razões económicas, quer porque o eleitorado votou em massa contra isso nas últimas eleições para a Presidência e para o Congresso.

Enquanto reduz impostos e aumenta o rendimento disponível das famílias, Trump aplica, ao mesmo tempo, um remédio austeritário para lidar com o gigantesco problema de dívida dos Estados Unidos.”

Para a União Europeia, o atual cenário geopolítico constitui um grande desafio. Pela primeira vez em 80 anos, o aliado americano deixou claro que poderá não vir em defesa da Europa Ocidental em caso de conflito com a Rússia. A Europa tem de se defender a si mesma, o que significa ter de fazer escolhas difíceis.

No entanto, a situação não é tão má como pode parecer à primeira vista. Em primeiro lugar, a União Europeia tem 450 milhões de habitantes e é a terceira maior economia do mundo. Dispõe dos recursos necessários para investir na sua Indústria de Defesa e fazer frente a potenciais adversários. É, antes de mais, uma questão de vontade política, sendo que esta fica facilitada pelo facto de a maior parte dos europeus não estar disposta a abdicar do seu estilo de vida e da sua liberdade. Pela primeira vez em muitas décadas, há apoio popular para o aumento do investimento na Defesa, nomeadamente nos países que realmente contam para este campeonato, como a Alemanha e a França.

Em segundo lugar, o futuro não tem de passar obrigatoriamente por um confronto com a Rússia. Mais tarde ou mais cedo terá de haver um acordo de paz duradouro que permita reintegrar a Rússia - que é, recorde-se, o maior país da Europa - no concerto das nações. Para isso, a União Europeia terá, por um lado, de garantir a sua própria Defesa. E, por outro, de ter uma abordagem realista nas relações internacionais, sem abdicar dos seus valores essenciais. Os próximos anos dirão se temos líderes de verdade.

Diretor do Diário de Notícias

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