O processo Sócrates é justo?
Enquanto o "berbicacho" com a AstraZeneca e a variante britânica do coronavírus não levarem alguém mandar o pessoal todo, deprimido, fechar-se novamente em casa, o país político e mediático vive eufórico na expectativa da decisão instrutória, prometida para esta semana, do juiz Ivo Rosa: será, ou não será, que ele leva o ex-primeiro-ministro José Sócrates a julgamento com uma acusação de corrupção?...
A opinião geral que ouvi nos comentários televisivos é a de que se Sócrates não é acusado de corrupção, então a justiça fica em maus lençóis por parecer que faz favores "aos grandes".
Vários até dizem que se Ivo Rosa mandar para julgamento apenas matérias relativas a fuga ao fisco, o fracasso "escandaloso" da justiça será imenso. Uma eventual absolvição total será um "terramoto".
A demora do processo é "intolerável". A democracia portuguesa é "imatura".
É realmente descoroçoante perceber que passaram seis anos, quatro meses e três semanas desde o dia 21 de novembro de 2014 em que José Sócrates foi detido, depois preso preventivamente e, 11 meses depois, libertado para esperar a decisão desta semana.
É doloroso tomarmos consciência de que, se houver envio do processo para julgamento, estaremos, na mais otimista das hipóteses, ainda a meio do período de tempo que nos distancia de uma decisão final, transitada em julgado, sobre culpados ou inocentes da Operação Marquês. Provavelmente, aliás, teremos de esperar mais uma dúzia de anos até tudo acabar.
É irónico constatar que ao fim deste tempo os nossos líderes de opinião, sempre prontos a criticar o populismo e os excessos dos extremistas, se portam como agitadores de redes sociais e acham que será "pouco" se este antigo primeiro-ministro for apenas acusado de fraude fiscal.
É patético ver os que inicialmente se atiraram contra os que criticaram o primeiro juiz do processo, Carlos Alexandre - aparentemente mais adepto das teses da acusação do que Ivo Rosa -, considerando essas críticas uma "pressão inaceitável sobre a justiça", serem agora os líderes das críticas a Ivo Rosa acerca do tempo que ele demorou a concluir o trabalho, dando bitaites sobre o que deveria ser o teor da sua decisão e "avisando-o" dos perigos de uma eventual anulação da acusação a Sócrates. Nada disto, ao que parece, é considerado agora uma pressão sobre a justiça.
É tradicional alguns órgãos de comunicação social que trabalham "fontes junto do processo" (e fazem muito bem, diga-se) receberem informações novas na semana em que se anunciam decisões importantes para a evolução do caso. Assim aconteceu nesta semana, numa operação de quem está a favor destas acusações para reacender o fogo popular aprioristicamente condenatório de Sócrates, ameaçando indiretamente lançar a ira das massas sobre uma possível decisão do juiz Ivo Rosa que seja desfavorável aos seus interesses.
É, finalmente, revelador haver tanta preocupação e alarido sobre os atos de um indivíduo que se terá aproveitado de um sistema corrupto, mas estar a cair num silêncio perturbador o processo que realmente julga todo o sistema, analisa o polvo e muito dos seus tentáculos onde estes indivíduos se agarram: o processo BES.
De tudo o que já li, ao longo destes sete ou oito anos que este romance dura, formei uma opinião - acho que Sócrates é culpado de corrupção. Tenho quase a certeza absoluta. Mas posso, naturalmente, estar errado, porque posso estar a pensar mal, a deduzir com erros, e porque só sei o que li na imprensa, não o que realmente está no processo.
Por ter a consciência de que posso estar errado e de que todos os que pensam como eu podem estar errados, adoraria que os tribunais tivessem condições, mesmo com toda a sua exasperante lentidão e aparente incompetência operacional, para decidir este caso, qualquer caso, sem terem de levar em conta as consequências políticas das suas decisões nem o impacto mediático que elas terão.
Apenas e só a convicção, límpida e pura, sobre o melhor que se conseguiu apurar acerca da verdade dos factos deveria contar no julgamento dos tribunais. Não acontecer isso é, podem ter a certeza, muito mais grave para a democracia do que ilibar erradamente um primeiro-ministro de corrupção.
Jornalista