O Processo kafkiano

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Anthony Grafton chamou a Praga “a capital europeia dos sonhos cosmopolitas”. Estive lá algumas vezes, nos anos decisivos do colapso do comunismo, e respirei ali essa memória do “mundo de ontem”, da Europa antes de 1914, de Stefan Zweig. É todo um espírito, todo um clima.

Em Viena, a cidade dos Habsburgo, temos outro lado desse mundo - grandes jardins, grandes palácios, memórias da Sissi/Romi Schneider e das valsas de Strauss -; ou em Budapeste, nação cativa, sempre em revolta; ou em Varsóvia, arrasada pelos vizinhos alemães e russos e reconstruída depois das guerras quente e fria do século XX.

Praga sempre foi diferente. É uma capital virada para sonhos “cosmopolitas”, feitos de imaterialidade, de almas ou espíritos do mundo encarnados nalguns intelectuais e literatos ali nascidos ou desterrados. E dos que, não sendo de lá, como Philip Roth e John Updike, escreveram sobre ela.

Franz Kafka é talvez o mais famoso dos escritores de Praga. É um judeu-alemão nascido em 1883, no tempo em que Praga, como Budapeste, fazia parte do império austro-húngaro. Não era filho de judeus ricos, como Stephan Zweig que, com um pai industrial têxtil e uma mãe “banqueira”, ou da família dos banqueiros Brettaurer, seria vítima de eleição do identitarismo racial nacional-socialista. Os pais de Franz Kafka eram judeus checos Ashkenazi remediados, que falavam Yidish mas escreviam em alemão.

Este ano, a publicação de O Processo, uma das suas obras mais importantes, faz 100 anos, e a morte do escritor, a 3 de Junho de 1924, faz 101.

Licenciado em Direito em 1906, Kafka fez carreira na burocracia. Trabalhava de dia e escrevia à noite uma obra que se encarregava de ir destruindo, e que, não fora pelo cuidado do seu amigo e companheiro de sonhos e tempestades intelectuais, Max Brod, não teria sobrevivido. Em vida, Kafka publicou pouco. Era um homem de mente e saúde frágil, paixões infelizes, leitor de pornografia e frequentador de bordéis. Sofria de insónias e em 1917 teve tuberculose.

Um dos seus romances mais famosos, Die Werwandlung, à letra, A Transformação, apareceu nas traduções mais comuns como A Metamorfose. É a história de um homem que se transforma num insecto gigante; uma “transformação negativa” ou uma espécie de “transubstanciação ao contrário”. Foi assim que a palavra “metamorfose” reentrou na nossa linguagem simbólica e comum com tintas kafkianas, sinónimo de um mundo absurdo de pesadelo, aliando a estranheza do perigo à sensação de opressão. Foi também depois de um seu outro livro, O Processo, uma sátira à burocracia e à justiça, que a palavra “processo” ganhou novos labirintos: um homem, Josef K., gerente de um banco, é detido em casa, mas fica numa liberdade vigiada porque tem um processo de que não consegue saber a origem nem a razão. Vive um pesadelo grotesco, onde os tribunais e as suas salas de espera surgem, a par de tabernas e casas, num dédalo mais absurdo que terrorífico. A mesma confusão reina em O Castelo (Das Schloss), quando um homem, também Josef K., é requisitado por um nobre para lhe reabilitar um castelo onde ele nunca consegue entrar.

À vida e obra de Kafka não faltam interpretações políticas. O regime comunista checo, a partir de 1948, considerou-o um burguês decadente, e o Ocidente encontrou nele um crítico de um totalitarismo que podia ir de Hitler a Estaline.

Mas além do grande escritor que foi, Kafka conseguiu a rara proeza de dar ao mundo um adjectivo insubstituível. Não há palavra capaz de nos dizer o que “kafkiano” nos diz.

Politólogo e escritor

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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