O processo contra José Sócrates
Não é a novela do verão, mas anda lá perto. A presença de José Sócrates em tribunal despertou, em força, o comentador que há em cada português.
É natural. Trata-se do primeiro ex-primeiro-ministro de Portugal a responder na justiça desta forma e por crimes que vão até à corrupção, nada menos.
Os comentários mais comuns têm-se centrado em três tópicos: o tempo que a justiça demorou até julgar José Sócrates; as manobras dilatórias da defesa do ex-primeiro-ministro, que interpôs centenas de recursos na tentativa de fazer prescrever parte dos crimes que constam da acusação. O terceiro tópico é a teoria da conspiração do arguido José Sócrates, que insiste que tudo não passa de uma golpada do Ministério Público e de outros poderes ocultos do Estado, todos alinhados contra si.
Quanto ao primeiro ponto, devemos ser claros. É vergonhoso para Portugal ver um dos seus cidadãos, qualquer que seja, envolvido num processo durante o número de anos que dura a Operação Marquês. O mega-processo, os milhares de páginas, a sucessão de juízes - de instrução e outros - o período de prisão preventiva a meio de toda esta viagem. Tudo foi cozinhado e transformado num caldo estragado que deverá ter feito com que Portugal caísse mais uns pontos no Índice do Estado de Direito. Foi sem surpresa que, por exemplo, em 2023, Portugal piorou a sua posição no índice, com a maior queda entre os países da União Europeia.
É claro que este tema desemboca no segundo: o das “manobras dilatórias” da Defesa ao longo do processo. É a este ponto que juízes e magistrados se aferram para argumentar que “tudo correu bem” e que só aos sucessivos recursos do arguido José Sócrates se deveu o enorme atraso no processo. A narrativa criada (uma palavra bastante cara ao ex-primeiro-ministro, aliás) é a de que a Defesa de Sócrates está a torcer as regras processuais a seu favor, num ato vergonhoso para se salvar da sentença.
Não alinho. Em nada disso. Se José Sócrates tem capacidade para pagar a melhor defesa e o processo penal permite os recursos em causa, então por que razão um arguido não os utilizaria em seu favor? O que estão a pedir os comentadores que o criticam nesse ponto? Que José Sócrates abdicasse voluntariamente de todo e qualquer instrumento ao alcance da sua defesa?
Em que mundo vivem? Abdicariam, voluntariamente, de usar um ou mais vazios legais para pagar menos IRS, por exemplo? E porquê? Porque alguma imprensa e a opinião pública já decidiu que é suficiente?
A verdadeira questão é que são poucos os que apontam o dedo a quem permite que a lei permita este tipo de processos. Aos legisladores que não limitam o número de páginas num processo (o de Sócrates tem mais de 4000), ou não impõem tetos ao número de recursos e incidentes processuais. Estes legisladores não são outros senão os deputados eleitos. Muitos deles advogados. Muitos deles provenientes dos mesmos grandes escritórios que - já se viu antes - são consultores e assessores na formulação de leis mais tarde aprovadas na Assembleias. Os mesmos causídicos que são contratados por altas figuras porque têm o mapa da mina para todas as subtilezas da lei que assessoram.
Se querem encontrar uma teoria da conspiração comecem por aqui.