O presidente da câmara e a Fonte do Amor
Sentadas à mesa numa sala de reuniões, várias pessoas manuseiam dossiês e folhas de papel. "Precisamos de compreender qual é o branding da cidade." Um projector inunda uma parede com quadros, gráficos, algarismos. Um homem de óculos e bigode une as pontas dos dedos em contemplação estratégica e pergunta se o branding é um letreiro.. "Não, não... o branding é algo que vem de uma visão geral." "Eu explico-te o que é o branding, interrompe outro participante. "Estive em Minneapolis e chamam-lhe a Cidade dos Lagos... e o Estado do Minnesota é o Estado dos Dez Mil Lagos! Mas isso não se vê só dentro do município... está escrito em todas as matrículas de carros!" O homem de óculos e bigode insiste que continua sem perceber o que é branding. "É uma lista de slogans?" Pausa. Suspiros. Ombros resignadamente encolhidos. "Porque é que não admitimos que não sabemos o que é branding?"
Um dos documentários mais interessantes de 2020 (Mayor, de David Osit) começa assim, em plena Iannuccilândia, e inclui várias cenas que podiam ser transplantadas com pouquíssimas alterações para um episódio de Veep ou The Thick of It. A sessão de branding - com vários assessores a tentar desbobinar o soundbite mais apelativo - é imediatamente familiar para qualquer ouvido treinado a reconhecer um dos mais fiáveis objectos de sátira contemporânea: o esforço para demonstrar fluência num dialecto especializado - neste caso, a língua franca do marketing e relações públicas.
Mas quando o homem de óculos e bigode sugere que o seu entendimento de branding é explicar às pessoas que a sua cidade tem passeios pedonais, árvores bonitas e sinais de trânsito que funcionam, o espectador já sabe que estamos na presença do presidente da Câmara de Ramallah, e, portanto, o humor não surge de uma forma específica de iliteracia, mas da aplicação deliberada das convenções da farsa burocrática àquilo que é uma anomalia permanente.
Uma cidade com pouco mais de 30 mil habitantes (e uma significativa minoria cristã) na Cisjordânia, 15 quilómetros a norte de Jerusalém, Ramalllah é uma espécie de capital oficiosa dos Territórios Ocupados, rodeada por colonatos israelitas, postos de controlo e guarnições militares, e subsistindo num curioso purgatório institucional - uma cidade não apenas sem autonomia, mas, para todos os efeitos, sem país. Mas também existe uma infraestrutura parcialmente funcional, e aquilo que as sessões de branding costumam designar como "uma cena cultural vibrante". As ruas e praças públicas exibem a mesma miscigenação comercial de qualquer metrópole globalizada (franchises genuínas como a KFC ou a Poppeye"s lado a lado com pastiches e simulações, como o café comicamente baptizado de Star & Bucks.).
O documentário acompanha Musa Hadid, o líder do município, ao longo de 20 meses, entre 2017 e 2019. A sua rotina consiste em transportar um cigarro electrónico entre vários pontos críticos da cidade, numa extenuante odisseia diária de microgestão. Ao passar numa obra, exorta alguém a não demolir a casa-de-banho das senhoras ("ou vamos ter problemas"). Ao visitar uma escola, elogia efusivamente as novas paredes cor-de-rosa e critica as portas das salas de aula, que teimam em não fechar ("para o ano, vamos substituí-las todas!"). Mayor não é guiado por uma linha narrativa central - não "conta" a história de uma campanha eleitoral nem mostra a passagem de legislação específica pelas engrenagens de uma burocracia formal. Durante grande parte do filme, a principal preocupação de Hadid parece ser a inauguração de uma fonte luminosa, a banda sonora que a deve acompanhar (Andrea Bocelli? Céline Dion?) e o seu nome oficial ("Fonte do Parque? Fonte da Vida? Fonte do Amor?"). Parte da comédia vem de um certo ocidentalismo performativo e da maneira como o contexto não atenua os infalíveis - chamemos-lhe os "instintos autárquicos" de Hadid; poucas pessoas além de um autarca conseguem dedicar tanto tempo, ansiedade e reflexão ao modo mais eficaz de estrear iluminações de Natal.
Mas é precisamente o contexto que nunca deixa de estar presente. A questão que paira sobre grande parte do filme é qual o grau de poder que o presidente da Câmara de Ramalllah consegue realmente exercer, e Mayor é também uma história de frustração vocacional: a de alguém empenhadíssimo em assumir a postura de um bonacheirão centrista tecnocrata numa situação que torna essa postura obrigatoriamente absurda.
Viagens de carro são feitas não ao som de boletins de trânsito, mas de notícias sobre escaramuças nocturnas e incursões militares. O horizonte é periodicamente debruado com nuvens de fumo negro. Há tiroteios regulares, um dos quais à porta do edifício municipal, enquanto Hadid se refugia no interior (um dos assessores sugere entusiasticamente que o Sr. Presidente podia comentar o tiroteio num live stream viral). A dada altura (no único momento em que reconhece directamente a presença de uma câmara), Hadid pergunta ao realizador se "as pessoas no teu país sabem o que se passa aqui?". É outro fio condutor do documentário, reforçado com algumas subtis simetrias de montagem: a repetida curiosidade de Hadid sobre aquilo que o resto do mundo sabe sobre eles e a sua frustração por não saber o que se passa no resto do mundo (há uma piada recorrente sobre a câmara não ter um televisor com acesso a noticiários estrangeiros e pedidos constantes de Hadid para lhe trazerem um rádio). "Não estamos a encontrar o tom certo para nos explicarmos" é uma observação que lhe sai mais do que uma vez, em situações diferentes.
Mais ou menos a meio do documentário, Ramallah recebe a visita de uma delegação parlamentar alemã, cujos membros exibem a mais fluente das fluências no dialecto especializado que a equipa de Hadid tanto se esforça por dominar. A reunião é outra farsa penosa, com Hadid a querer explicar as causas (bloqueio administrativo israelita) e consequências (esgotos a céu aberto) da ausência de uma estação própria para tratar águas residuais, e os deputados alemães a debitarem lugares-comuns sobre "programas de intercâmbio" e outras "iniciativas com jovens" para promover "o diálogo entre povos" e "educar o público israelita". É a linguagem-padrão do Ocidente para aquilo a que Saul Bellow chamou a sua "estância moral": a "questão do Médio Oriente", oportunidade para reiterar abstracções históricas e pespectivas em segunda mão e para exortar os agentes involuntários de uma crise permanente a educar quem a criou.
Confrontado (supõe-se que não pela primeira vez) com um convite para se encarregar da educação alheia, Hadid esfrega pacientemente o sobrolho e dedica-se, também pela enésima vez, ao desafio de encontrar o tom certo para se explicar: "Um soldado de 16 anos tem autoridade para me apontar uma arma à cara e obrigar-me a tirar a roupa em público... Não são as condições ideais para o diálogo." Um deputado alemão acena solenemente com a cabeça e diz que compreende a posição. "Mas", especula, "será essa a melhor estratégia?"
Escreve de acordo com a antiga ortografia.