O povo é quem mais ordena?

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A nossa cultura política deixou-se impregnar por um tipo de moralismo que tende a associar o bem e o mal absolutos a posições ideológicas ou a decisões políticas ditadas muitas vezes pela necessidade e pela razão de Estado.

A Esquerda parece entender que, tendo o regime democrático sucedido ao Estado Novo, continua a ter o direito histórico de censurar a “desinformação” para que triunfem “o progresso e a verdade”. O facto de o Estado Novo ser um regime autoritário e de a democracia ser, por definição e proclamação, liberal, aberta e respeitadora dos factos não parece embaraçar os novos donos do polígrafo.

Porque é precisamente agitando polígrafos e alegando liberalidade, abertura, factualidade e verdade que hoje se faz propaganda ou se cria um clima quase terrorista a quem não professe a linha geral em temas tabu tão díspares como a guerra da Ucrânia, as eleições americanas, o aborto ou a eutanásia. Quem não venerar Zelensky e não insultar Trump em público, quem “ainda” acreditar que a vida merece protecção ou pelo menos ponderação na hora da sua “interrupção”, só pode ser avençado de Moscovo, machista, homófobo, fundamentalista, supremacista branco, neo-fascista, neo-social-fascista, nazi, o que seja.

Verdade e consequência

Fareed Zakaria em Age of Revolutions: Progress and Backlash from 1600 to the Present (W. W. Norton & Company, 2024) lembra que, sem imprensa, a Reforma podia não ter acontecido e que sem máquina a vapor teria continuado a escravatura.

Ora, tal como a ciência e a técnica, as ideias contam. Alexis de Tocqueville e Georges Sorel mostraram que foram as ideias disseminadas entre a classe dominante – a leitura da Enciclopedia e a deslegitimação das instituições do Ancien Régime nos salões das grandes damas – que determinaram o clima de opinião que levou à Revolução Francesa. Assim, quando a Revolução chegou, já poucos acreditavam que “Luís XVI fosse rei de França pela graça de Deus” … Incluindo o próprio, a avaliar pelo seu comportamento de 14 de Julho de 1789 até ao cadafalso, em 21 de Janeiro de 1793.

As grandes mudanças têm uma gestação relativamente longa e subterrânea, e o que está a passar-se de há uma década para cá, longe de ser o resultado abrupto e surpreendente de uma conspiração radical “das direitas” é o culminar de um processo histórico que deixou para trás muitos, em nome dos interesses de alguns. A diferença é que, agora, os fenómenos acontecidos vêm contra a narrativa optimista das “classes dominantes” de um progresso contínuo e sem grandes custos.

É a narrativa dos Iluminados, que passou para os utópicos do século XIX e que, apesar da roupagem científica ou por causa dela, foi credenciada por Marx. As suas raízes são a vontade geral de Rousseau, que obriga a minoria a ser livre, e o determinismo do profeta de O Capital, que acreditava no inflexível processo histórico que construiria sociedades perfeitas capazes de mudar a natureza humana.

Agora as elites tecno-burocráticas e os grandes conglomerados empresariais que impulsionaram a desindustrialização do Ocidente e o globalismo ideológico, com o aplauso das elites académicas e dos media, confessam-se – como Zakaria – surpreendidos com a reacção popular. Não concebem um povo que valorize a pátria, a família, as fronteiras, a identidade nacional. Dizem-no manipulado por populistas e ressuscitam fantasmas que vão de Hitler à Inquisição. Proibir plataformas “desinformativas”, questionar a validade de decisões eleitorais e impedir que seja este o povo que ordene começa a ser o caminho adoptado.

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