O pós-Assad?

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A queda de ditadores com um historial de décadas de poder não é algo novo no mundo árabe. Bashar al-Assad governava desde 2000, mas estes seus 24 anos de homem forte da Síria até parecem poucos comparados, por exemplo, com os 42 do líbio Muammar Kadhafi, os 34 do iemenita Ali Saleh (se contarmos igualmente o período como  líder do Iémen do Norte) ou os 30 do egípcio Hosni Mubarak. O tunisino Ben Ali, o primeiro dos ditadores a cair por causa da chamada Primavera Árabe, também governou 24 anos.

O que distingue Assad, agora o quinto ditador vítima desse movimento de revolta e de esperança que tomou o mundo árabe em dezembro de 2010, é a sua capacidade de resistência. Poderiam ter sido 11 anos e não 24 anos no poder.

Ben Ali, depois da prepotência da sua polícia contra um vendedor ambulante ter indignado a rua tunisina e árabe em geral, logo no início de 2011 fugiu do país. No Egito, Mubarak foi preso também nos primeiros meses de 2011. O líbio Kadhafi, depois de uma Guerra Civil em que a NATO veio em apoio da oposição, foi morto ainda em 2011. E Ali Saleh, mesmo aguentando até ao início de 2012, deixou o Iémen depois de perceber que não tinha condições para se aguentar.

Assad resistiu, de início, por ter sido implacável com os primeiros protestos, ainda pacíficos. Resistiu depois, quando a revolta já era armada, graças ao apoio militar da Rússia, do Irão e dos combatentes libaneses do Hezbollah, cujo patrono é Teerão e, portanto, veio em socorro de um dos pilares do ultimamente tão falado Eixo da Resistência. Assad terá chegado a acreditar ter derrotado a rebelião, quando esta ficou confinada à província de Idlib. Não foi, aliás, o único a acreditar que o assunto estava resolvido: em maio de 2023, o presidente sírio foi convidado a participar na Arábia Saudita na Cimeira da Liga Árabe, onde posou para a foto de grupo com líderes que, nos anos anteriores, tinham claramente financiado - e até armado - os grupos rebeldes que o tentavam derrubar e ao regime criado pelo seu pai, Hafez al-Assad, no início dos Anos 70, e que lhe foi oferecido em 2000.

Quando o Hayat Tahrir al-Shams saiu, há pouco mais de uma semana, de Idlib, rompendo uma trégua informal negociada em 2020 pelos patronos turcos dos rebeldes e pelos russos, e conquistou Aleppo, foi uma surpresa. Mas ainda se especulou que o Exército governamental tinha sido apenas apanhado desprevenido e recuperaria a segunda cidade do país sem grande demora. Depois a ofensiva-relâmpago prosseguiu e caiu Hama, depois Homs e no domingo, finalmente, Damasco. Ninguém, ou quase ninguém, lutou por Assad. E este, pelo que se sabe, procurou refúgio em Moscovo.

Preferiu o exílio, como Ben Ali, e evitou assim o destino trágico de Mubarak ou o ainda mais trágico de Kadhafi. Ali Saleh também se exilou, mas voltou e acabou morto.

Falta explicar muitas das razões do sucesso dos rebeldes, cujo líder, conhecido como Abu Mohammad al-Jolani, já celebrou a vitória em Damasco. Parece haver entendimentos com setores do regime e é evidente que a impopularidade de Assad ajuda a um momento de celebração de liberdade e de unidade. Também se percebe que há acordos, pelo menos tácitos, entre potências envolvidas no conflito, pois são muitos os interesses a defender por uns e outros, da Turquia à Rússia, do Irão a Israel, e não esquecer os Estados Unidos, que em nome do combate ao Estado Islâmico ainda têm uma base no país e saudaram esta queda de Assad.

Mas é evidente que o destino da Síria foi decidido, em grande parte, por duas guerras alheias. O envolvimento na Ucrânia obrigou a Rússia a reduzir meios na Síria e finalmente a abandonar o seu protegido. E o ataque israelita ao Hezbollah retirou a Assad um aliado vital no terreno, combatentes experientes, cujo xiismo servia de motivação para enfrentar uns rebeldes sunitas, muitos deles jihadistas (até ex-Al-Qaeda), o que assustava as minorias, incluindo os 10% de cristãos.

O legado desta longa a guerra é conhecido: meio milhão de mortos, sete milhões de deslocados internos, seis milhões de refugiados. Também fica um território retalhado, pois Assad nunca recuperou o controlo total. Os curdos estão atentos ao futuro, os alauitas, a comunidade da família Assad, estão certamente preocupados, e milhões de sírios, depois da festa pela queda de um líder que chegou a ser visto como um modernizador, mas deixa um legado de destruição, começarão a pensar qual o pós-Assad.

Veremos se os novos líderes, e aqueles que os apoiam de fora, evitam cair na armadilha de fomentar uma nova guerra, do todos contra todos, e conseguem que desta vez não se confirme que no Médio Oriente ao caos sucede mais caos.

Diretor-adjunto do Diário de Notícias

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