O poder da palavra

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O Senhor Presidente da República, a propósito de dados publicados pelo INE, afirmou recentemente: “Uma coisa não joga com a outra: ou temos um milhão e seiscentos mil imigrantes e temos 12 milhões de residentes, ou temos 11 milhões de residentes e temos um pouco menos de um milhão de imigrantes”. “Um dia teremos os números exactos para se poderem ter políticas públicas com cabeça, tronco e membros.”

Estas declarações colocam em causa uma das mais inquestionáveis instituições portuguesas e, apesar disso, ninguém se sentiu na obrigação de vir explicar o que estaria a acontecer.

Nas muitas dúvidas que sempre tivemos sobre muitas coisas, nunca tivemos dúvidas sobre a fiabilidade do INE. As dúvidas foram sempre sobre as consequências que cada um de nós tirava a partir dos dados.

Ora factores de incerteza, ou de banalização da palavra, é o que menos necessitamos quando Portugal vive um dos momentos políticos mais difíceis deste meio século de democracia. Democracia que todos nós, cada um a seu modo, ajudou a construir.

É verdade que os fundos que há quatro décadas chegam a Portugal vão-nos dando uma capacidade de mudança e de progresso que durante muitos anos não tivemos, ainda que as últimas noticias sejam no sentido de que estamos a claudicar na sua execução.

No entanto, notícias recentes, de que são exemplo o aumento do endividamento das famílias, a diminuição do consumo, ou os maus resultados escolares, aliadas a um quadro político que se vem degradando, com acentuada, e frequentemente gratuita, agressividade e com um radicalizar de posições pode inviabilizar, o necessário diálogo entre as forças políticas democráticas.

De facto, as dificuldades com que o mundo se confronta de forma cada vez mais violenta, a par de uma cada vez mais fragmentada representação política, em Portugal e na Europa, exigem uma atitude de mobilização cidadã e de liderança política que só um profundo e consolidado conhecimento do mundo, do país e dos seus protagonistas conseguirá alcançar.

Vivemos um regime político pensado e construído assumindo a existência de duas forças políticas que, representando em conjunto cerca de 80% dos portugueses, assumiam expressamente políticas comuns quanto às questões internacionais, máxime europeias, e de soberania e diferenças em matéria económica, social, de modelo de desenvolvimento e de superação das desigualdades.

Por isso a importância do poder da palavra. Na pedagogia da democracia, no reforço das instituições, e na defesa da tolerância e dos direitos humanos.

Impõe-se a construção de novos modelos, novas abordagens, capacidade de renovação e sobretudo uma atitude deliberada de querer melhorar. Sem rupturas, sem ajustes de contas com o passado e compreendendo que o nosso “chão comum” é a Constituição da República.

Portugal precisa de estabilidade política, de mobilização dos portugueses, de um pacto democrático para o desenvolvimento que considere todo o território, de uma profunda e consensual reforma do sistema político e eleitoral, de um pacto que não deixe ninguém fora do sistema ou nas suas margens.

O poder da palavra, a par do poder da mobilização dos portugueses, do poder de concertação e de persuasão dos actores políticos, são os poderes que podem fazer a diferença.

Após meio século de democracia precisamos de dar um novo impulso à nossa democracia e ao nosso regime, mas, importa enfatizá-lo, não precisamos de um novo regime.

Advogado e gestor

Diário de Notícias
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