O passado não tem 20 anos
Falareis de nós como de um sonho...
(Jorge de Sena)
Na infância e adolescência que tive, a leitura solitária preenchia a totalidade do espaço concedido à imaginação de outros lugares e à transmissão de outras experiências. Será difícil hoje imaginar como só os livros preenchiam essa margem de sonho, que hoje os meios audiovisuais e informáticos vieram ocupar com multiplicidade e eficácia.
É verdade que nada pode substituir essa silenciosa procissão de imagens que as palavras escritas nos livros nos traziam. Natacha da Guerra e Paz ria e dançava na minha imaginação, como nenhum filme me conseguiu fazer ver, simplesmente porque era aquela que eu tinha imaginado só para mim, dividida entre o André que eu invejava e o Pedro com que me identificava. Podemos desejar personagens de romances tanto como as nossas colegas de escola. Mas aquelas estão permanentemente disponíveis para o nosso sonho, dentro das páginas onde para sempre vivem, e as colegas da escola riem dos meninos que usam óculos e leem de mais...
Eu compreendo que a relação com os livros tenha deixado hoje de ser tão exclusiva, mas sei que haverá sempre muitos para quem ela continuará a ser tão absorvente e mesmo arrebatadora. Não acredito que a leitura tenha decrescido, tanto quanto os números dizem, no interesse dos jovens (na minha geração também eram poucos os que liam), mas assisto ao menosprezo crescente no discurso social da arte da palavra. A retórica, que era instrumento essencial da persuasão, foi substituída por curtos soundbytes e não encontramos já políticos que cultivem a escrita e prezem os escritores, como De Gaulle, Churchill, Mitterrand... ou Estaline, que respeitava e considerava tanto a literatura que assassinava os escritores que lhe fizessem frente!
Escrever deixou de ser uma forma adequada de comunicação política a partir do momento em que esta passou a concentrar-se em mensagens muito breves, muito imaginativas e apelativas, mas menos articuladas e fundamentadas. Quando o epigrama se substitui à oratória sentimos que entrámos já num outro espaço, um espaço em que o debate público é mais ofegante, mais simplificado, mas nem por isso menos duro e assertivo.
Mas os novos devem fechar os ouvidos, como Ulisses o fez a sereias bem mais atraentes e esplendorosas, aos discursos dos velhos que, estranhando o tempo em que vivem, recriminam tudo e todos e apontam para a sua própria juventude como para uma idade de oiro, que só o foi na verdade para os músculos e para os desejos dos homens e das mulheres daquele tempo. Todas as épocas encontram os seus anjos e os seus demónios, as suas promessas e as suas catástrofes.
A certeza que adquirimos de que a história é um mecanismo incontrolável de surpresas e de inesperadas peripécias, contrariamente à convicção messiânica que era a nossa da determinação de todas as coisas no rumo de um futuro radioso, deve encher-nos mais de entusiasmo do que de terror. Se tudo é inesperado, então tudo também é possível.
Alguns querem fazer voltar a nossa época ao terror identitário que nos deu durante séculos a exclusão e a guerra. Esses olham para o passado como para a Idade de Oiro, do mesmo modo que os velhos lamentam os tempos em que podiam ser pobres, doentes, excluídos - mas em que tinham 20 anos e o apetite glorioso dos 20 anos! Acontece que o passado não tem mais e nunca mais terá 20 anos, nem com as fardas da Mocidade Portuguesa nem com os uniformes do presidente Mao!
Diplomata e escritor