O paralelismo entre a guerra e a pandemia
Durante a pandemia, proliferaram as metáforas de guerra, tendo sido identificadas mais de três centenas em diferentes línguas. Foi igualmente vulgar encontrar símbolos bélicos na luta contra o designado "inimigo invisível" (pelo menos a olho nu, porque é possível ver o SARS-CoV-2 num microscópio eletrónico). Tivemos inclusive um militar fardado a dirigir as operações de vacinação em Portugal. Por outro lado, sobejam exemplos de guerras em que se recorreu a metáforas biomédicas. Algumas chegaram a evocar a necessidade profilática de atos de agressão, como a guerra ao terrorismo, justificando métodos coercivos que de outra forma seriam intolerados (por exemplo, tortura como uma forma de "vacinação" para males maiores). A guerra e a doença espoletam ansiedade coletiva extrema onde germinam regimes que hospedam o que o "normal" rejeita. Daí a metáfora guerra-doença, como uma arma ansiogénica, que nos impele no combate ao inimigo, seja ele visível ou invisível.
Metáforas à parte, é certo que os paralelismos entre a pandemia COVID-19 e a atual guerra na Ucrânia se tornaram inevitáveis, pela sua proximidade, bem como pelo alcance do impacto nas nossas vidas em modo tandem. Destaco alguns.
AS TRINCHEIRAS IDEOLÓGICAS
Para quem se demite da análise crítica e se limita a seguir uma cartilha ideológica, a tomada de posição tanto sobre a pandemia, como sobre a guerra na Ucrânia (ou para alguns, "intervenção militar especial"), é tão indefetível quanto instantânea. Não há reflexão, é a aplicação de um algoritmo ideológico engendrado por outrem. Este posicionamento prêt-à-porter em trincheiras ideológicas mina a discussão séria sobre os factos. Remanesce apenas a procura do melhor armamentário retórico para fazer valer a posição na barricada pré-estabelecida. Há quem escave nos meandros da história, há quem navegue pelos inúmeros estudos em busca de um que valide o seu ponto de vista (o famoso cherry picking da desinformação e do negacionismo - uma praga que também encontra solo fértil nesta crise bélica). Depois procura o comentador, o perito, militar ou epidemiologista, que corrobore as suas ideias e as articule com desejada perícia, que dê enfim os tiros certeiros na trincheira ideológica discordante.
Nesta guerra de opinião entrincheirada, há um tópico recorrente sobre a origem do problema.
A ORIGEM DO PROBLEMA E A "IDADE DOS PORQUÊS"
Numa entrevista a Richard Feynman, o prémio nobel da física que ajudou a criar a primeira bomba atómica e que foi vigiado pelo FBI sob suspeita de ser um espião russo, surgiu a questão sobre o que se passava ao certo na fronteira entre dois imanes, que como nos regimes, podem atrair-se ou repelir-se. Feyman passou os cinco minutos seguintes numa deliciosa elucubração intelectual sobre os inúmeros "porquês" que podem preceder qualquer questão e a forma como são abordados ("But the problem, you see, when you ask why something happens, how does a person answer why something happens?"). Muitos se debruçaram sobre os diferentes "porquês" que precedem a origem da pandemia (fora ou dentro da China? no mercado ou num laboratório? intencional ou acidental?...), tal como mais recentemente sobre a origem e as motivações que levaram um regime tirânico a violar fronteiras em plena Europa do século XXI. Claro que comummente não se trata de genuína curiosidade, mas antes uma tentativa de aguçar o apetite com teorias da conspiração ou tão-somente justificar o que é moralmente injustificável. No caso da guerra, assiste-se por vezes a uma afrontosa "pseudo-psicanálise" sobre potenciais traumas primordiais que justifiquem a agressão russa. A humilhação pelo ocidente? A provocação americana? A potencial expansão da NATO? A profilaxia de uma guerra com uma... guerra? Uma intercorrência histórica, quiçá clínica?...
Se ao menos este refluxo da "idade dos porquês" tivesse a curiosidade intelectual de Feyman, mas não, é na maioria dos casos uma inqualificável "guerra de manobra" nas trincheiras ideológicas. Tal, é claro, prevalente entre as minorias em contracorrente, dos anti-vaxxers aos putinistas, que se sentem marginalizadas, mas também energizadas pela sensação de enxergarem mais além que os demais. Tal qual terraplanistas que não se conformam com o que a ciência, a escola, ou a comunicação social nos dizem sobre a forma geométrica do nosso planeta. Têm outro alcance, outro horizonte (plano).
A FASE DA NEGOCIAÇÃO
O modelo de Kübler-Ross descreve cinco estádios pelos quais as pessoas passam ao lidar com a tragédia, ao nível individual e tipicamente associado à doença ou a uma fatalidade. No que à guerra diz respeito, podemos traçar um paralelismo com a opinião pública. Ultrapassámos as duas fases iniciais (negação e raiva), o que se traduz em menos atenção
sobre o tema. Sim, é uma tragédia o que se passa na Ucrânia, mas não, já não há o mesmo alerta inicial, sendo que os telejornais voltaram ao tradicional menu de trivialidades, com o jubileu da rainha, as feiras de enchidos e as quezílias entre atores. Observámos o mesmo com a "fadiga da pandemia" e com a quase forçada declaração unilateral de fase endémica, menos ditada pela realidade do que pelo nosso desejo.
Terminámos então a fase da negociação com o vírus e iniciámo-la agora com a guerra. Pese-embora as atrocidades, os crimes de guerra e a destruição de um país, talvez esteja na hora da Ucrânia ceder, negociar, para evitar um estádio pior e, claro, enunciam-se tremendos (e muito reais) males maiores. Quem não está disposto a negociar fica rotulado de insensível, pouco adepto da paz ou incauto perante o perigo de uma guerra nuclear ou da catastrófica fome que se avizinha. O ónus desta calamidade transita do agressor para a vítima. A Rússia invade e bloqueia os portos ucranianos, cinge ostensivamente o transporte de cereais, mas é sobre quem é agredido que recai a responsabilidade de evitar a catástrofe que se adensa. É a fase da negociação, que no modelo de Kübler-Ross precede a da depressão.
TRADE-OFFS & DILEMAS MORAIS
Em 1905, um célebre caso judicial dos EUA debruçou-se sobre o dilema entre a liberdade individual e o bem coletivo no contexto de saúde pública. O pastor Henning Jacobson opunha-se à vacinação compulsiva da varíola e colocou o estado de Massachusetts em tribunal. Perdeu, mas ascendeu ao posto de herói-mártir dos anti-vaxxers. O tribunal confirmou o poder do Estado em zelar pela saúde pública no combate à varíola. Este caso, conhecido como Jacobson v. Massachusetts, é evocado até aos dias de hoje em dilemas afins. Com a COVID-19, o conflito entre princípios morais assaltou-nos constantemente. Todas as medidas de combate à pandemia visavam o interesse do coletivo, porém comprometiam o princípio da liberdade individual. Também se questionou se a hecatombe económica causada por essas medidas se justificava, ante um vírus letal sobretudo nas idades mais avançadas. O dilema moral de comprometer o futuro das gerações mais novas para salvar as mais velhas. Similarmente, na tal "fase da negociação", os dilemas morais em torno da guerra da Ucrânia multiplicam-se. Ecoam perguntas cruéis de quem observa uma guerra à distância, pouco disposto a abdicar do conforto em que vive, desejando paz com assaz vigor. "Quantos milhões de mortos vale o Donbass?", chega-se a indagar. "Porque não cedem os ucranianos?" Tem, pois, de haver trade-offs para que se salve a face de quem destrói um país e viola em toda a linha o Direito
Internacional. Esperemos nós jamais ter de escutar perguntas semelhantes, ser invadidos e ainda assim ter de presentear o agressor com parte do nosso país em prol da paz que outros à distância tanto desejam. Seja qual for o desfecho, com ou sem trade-offs, o horizonte desta guerra é deprimente. Talvez um dia os peritos dos "porquês" consigam dar uma resposta derradeira e convincente às gerações futuras ucranianas que terão de reconstruir o seu país. Duvido.
Chego assim ao último paralelismo. Não existe propriamente uma lógica sólida, um catedrático "porque..." na ruína humanitária, económica e social causada tanto pelo SARS-CoV-2 como pelo regime despótico russo. É o que é, um vazio de propósito, arbitrariedade para um lado, crueldade para outro. Embora, por vezes, seja mais fácil compreender o desígnio de um "inimigo invisível", composto por um pedacinho de DNA e proteína, que o do Homem.
Professor na Escola Nacional de Saúde Pública e epidemiologista