O paradoxo do passado

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Dois homens com cinquenta anos de vida e vinte de política não se entenderem para agendar um debate é um mau sinal. A proposta mais sonora de ambos ser o aumento de salários acima do estabelecido por António Costa apesar da inflação também é. O país, entretido com uma guerra a 4 mil quilómetros de distância, não se tem interessado pelo PSD. Luís Montenegro e Jorge Moreira da Silva não têm exatamente feito por isso. O primeiro, por não querer expor o seu favoritismo ao desgaste da confrontação. O segundo, mais surpreendentemente, por alguma dificuldade em fazer chegar as suas ideias - em maturação no seu think-tank há quase dez anos - às pessoas. Têm, portanto, responsabilidades distintas na indiferença com que a corrida à liderança do maior partido da oposição tem sido recebida no espaço público - talvez fruto das suas personalidades igualmente antagónicas.

Montenegro mantém as qualidades menos evidentes do que os seus defeitos; Moreira da Silva as valências mais óbvias do que as suas dificuldades. Aquilo que os une - a suscetibilidade à incoerência - separa-os se relacionada com o tempo. O problema de Luís estará no futuro, porque é sempre mais difícil manter a consistência numa estratégia de oposição constante ao governo, como aquela que defende em contraste com Rio. Montenegro diz que não fará acordos com "este PS" e a premissa torna-se imediatamente questionável. Por um lado, porque deputados do seu grupo parlamentar reuniram diversas vezes com socialistas para conversas sobre a descentralização, o novo aeroporto e o quadro comunitário. Por outro, porque se não se senta à mesa com "este PS" o PS que se segue não se adivinha propriamente mais moderado ou centrista do que o atual. Montenegro, sobretudo, será atormentado por ter tentado depor um líder em funções sem este ir a votos ‒ e apenas baseado em sondagens ‒, legitimando qualquer um que faça o mesmo contra si perante sondagens que também não serão famosas.

O problema de Jorge, a meu ver mais ardiloso, tem que ver com o passado. Mais concretamente, com o passado recente. Ele, dono de um percurso político invejável, com experiência nacional e estrangeira, executiva e académica, sofre de um enquadramento político escorregadio aos dias de hoje. Aliás, esta eleição interna é um desafio bem mais complicado para Jorge Moreira da Silva do que a próxima que vier disputar. Tal deve-se aos anos de Rui Rio e à tarefa hercúlea que é não hostilizar os seus mandatos verdadeiramente lastimáveis. O leitor repare. O Jorge Moreira da Silva que foi número 2 e ministro de Passos Coelho é o mesmo Jorge Moreira da Silva que herdou a máquina de Rui Rio (um vice-presidente, dois secretários-gerais-adjuntos, dois cabeças-de-lista, etc.), tendo a direção de Rio contado com a bastonária dos advogados que processou o governo de Passos (e de Moreira da Silva). O Jorge Moreira da Silva que coordenou as autárquicas de 2013 é o mesmo Jorge Moreira de Silva cujos resultados foram bode expiatório da derrota de Rio nas eleições locais de 2021. O Jorge Moreira da Silva que pediu a demissão de Rui Rio em 2019 é o mesmo Jorge Moreira da Silva que votou Rui Rio nas diretas que se seguiram. E o Jorge Moreira da Silva que recusa terminantemente o Chega tem como mandatária Ana Rita Cavaco, presença amigável no último congresso de Ventura.

O ponto, para que fique claro, não são as qualidades pessoais ou políticas de Moreira da Silva. A sua abnegação, ao sair da OCDE para tentar o seu partido, é absolutamente admirável. O ponto é que o equilibrismo entre essas qualidades e a miséria do rioísmo tem um limite. Daqui a dois anos, naturalmente, tudo será diferente. Para Moreira da Silva e para o PSD.

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