O papa, o vice-presidente e a democracia

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Portugal prepara-se para mais umas eleições e no fim das arruadas, comícios, discursos, tempos de antena e debates que nos acompanharão nos próximos dois meses, os partidos políticos terão, se tivermos sorte, apresentado as suas propostas para a próxima legislatura. Se não tivermos sorte, iremos passar dois meses a assistir a insultos e ofensas de parte a parte e chegaremos ao dia das eleições a saber muito pouco sobre o que propõem os partidos sobre o país e o mundo.

Seja como for, e considerando a fragmentação do nosso sistema politico-partidário, não faltarão alternativas para representar os nossos pontos de vistas e defender os nossos interesses. E a maior parte dessas propostas, com maior foco na promoção da igualdade entre as pessoas ou mais preocupação na preservação da nossa liberdade individual, defendem uma ideia moderna de democracia, composta pelos nossos direitos políticos e cívicos e pelos nosso direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, construída na noção que somos todos iguais perante a lei, na realização de eleições livres e justas e na separação dos poderes.

Outro há que, num extremo do espectro político ou no outro, baseiam a sua visão do mundo numa luta entre vilões e vítimas. À esquerda, a luta faz-se entre o capital e o trabalho e à direita entre os que vêm de fora e os que são de cá. Ou seja, uns e outros propõem uma sociedade que se constrói na divisão entre as pessoas que cá vivem, cá trabalham e que contribuem para o nosso bem-estar coletivo, sejam trabalhadores e empreendedores ou nacionais e imigrantes.

A divisão entre “nós” e “eles” não é uma particularidade nacional e temos vindo a assistir a um crescimento dos seus defensores, particularmente das propostas da extrema-direita nas democracias liberais na Europa e nos Estados Unidos. Estas visões conflituantes entre “todos” e “nós e eles” conheceram um desenvolvimento interessante, quando o vice-presidente dos Estados Unidos – um católico praticante – defendeu a política de expulsão dos imigrantes da atual Administração americana, afirmando que a Bíblia estabelece uma “ordem do amor”, ou seja que devemos dar prioridade aos que nos são próximos.

A resposta à leitura teológica de J.D. Vance veio diretamente da caneta do papa Francisco que, numa carta aos bispos dos Estados Unidos, lembra que a família de Jesus teve de procurar refúgio no Egipto para evitar a perseguição e acrescenta que, embora um Estado tenha o direito de se proteger, “o ato de deportar pessoas que, em muitos casos deixaram as suas terras por causa de pobreza extrema, insegurança, exploração, perseguição, ou deterioração do meio ambiente, ataca a dignidade de homens, mulheres e famílias inteiras e coloca-as num estado de particular vulnerabilidade e insegurança” (a tradução é minha).

Acrescenta o papa que este não é um assunto menor, pois o Estado de Direito exige que todas as pessoas, em particular as mais frágeis, recebam um tratamento digno. E numa referência direta ao vice-presidente, Francisco afirma que a “verdadeira ordem do amor que devemos promover chega-nos pela parábola do bom samaritano” que, diz o papa, fala-nos na fraternidade para todos, sem excepção.

Regressando a Portugal e às próximas eleições, somos uma democracia laica, onde todas as religiões são praticadas livremente. Mas para quem faz do seu catolicismo um instrumento da sua participação na política, melhor seria que desse mais atenção ao papa e menos ao vice-presidente dos Estados Unidos.

Professor Convidado IEP/UCP e NSL/UNL

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