O país dos treminhões

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Guarapuava, pequena cidade do interior do Paraná onde passei uma semana em trabalho, é terra de fazendeiros, capital do agronegócio paranaense e, como tal, importante bastião do bolsonarismo. Estava prevista uma passagem do líder pela cidade no final da semana passada, mas o cancelamento da mesma, devido à presença no funeral da rainha, não desmobilizou os seus boçais e façanhudos apoiantes, ufanos e armados, numa cidade pejada de bandeiras brasileiras e propaganda azul e verde da chapa 22. Até eu fui alvo, ao pequeno-almoço no hotel, da verborreica e tonitruante investida de um candidato a deputado federal, que sonhava ser ministro da Educação, e só o meu sotaque português fez murchar a sua ruidosa efusividade. No regresso, viajei pela BR-277, que liga o porto de Paraguaná à Foz do Iguaçu, entre Guarapuava e Curitiba, em vez de mata atlântica ou araucárias, pude conhecer os perigosos treminhões.

Ao fim de poucas horas em terras brasileiras, percebe-se que, nos dias que correm, intimidação e medo são constantes e que "eleições" é perigoso tema de conversa. A viagem diurna de regresso a Curitiba, com um motorista desconhecido, antevia-se, portanto, taciturna e silenciosa. A traseira de um camião - ou caminhão, como se diz por lá -, indicando ter 30 metros de comprimento, a circular a toda a brida por uma estrada de apenas uma faixa de rodagem em cada sentido, fez-me exclamar de surpresa. O motorista, creio que também contente pela quebra do mutismo, contou-me que se tratava de um treminhão e alongou-se a dissertar sobre o tema.

O Brasil alberga dois dos mais importantes biomas do mundo, a floresta amazónica e a mata atlântica. Apesar das frequentes notícias sobre o criminoso e imparável desmatamento da floresta amazónica, sobretudo nos últimos cinco anos, por cá pouco ou nada se fala do progressivo desaparecimento da mata atlântica, que outrora ocupou 17 Estados do litoral do Brasil, mas de cuja área original restam hoje apenas 12,5%, entre o Rio Grande do Norte e o Rio Grande do Sul. Se a cadeia de produção de carne constitui o motor do desmatamento da Amazónia, o agronegócio - de que o Brasil pretende tornar-se líder mundial até 2050! - é o maior inimigo da mata atlântica. A soja, de que o Brasil é atualmente o maior produtor mundial, constitui grande impulso do agronegócio, tendo 44% da produção a China como destino. Mato Grosso do Sul (o do Pantanal) e o Paraná são os Estados que mais a produzem.

Num país praticamente desprovido de ferrovias, o transporte faz-se por rodovia e o caminhão é o rei da estrada. A busca incessante de lucro tem levado transportadoras a pôr de lado a segurança e a procurar meios, por vezes ilegais, de transportar cada vez mais carga. Assim nasceram os bitrenzões ou treminhões, que tracionam dois ou mais reboques, de nove eixos de rodado, até 30 metros de comprimento e 74 toneladas de peso bruto total combinado. O perigo e os danos que provocam nas (já de si deficientes) estradas brasileiras, mesmo as "BR", são muitos, pelo que não surpreendem as ações para a sua restrição ou até proibição. No país de Bolsonaro, porém, tudo o que é questionável e perigoso foi liberado: a compra e uso de armas, o desmatamento, o genocídio dos povos indígenas, a força e a ignorância brutas, a fome e a miséria. E os treminhões. Natureza, vida, democracia, liberdade, inteligência, essas, estão sob ataque.

Oxalá, este grotesco e inconcebível império do absurdo conheça em breve o seu termo. A bem do Brasil e do resto do mundo.

Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

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