O obscurantismo: ou a mentalidade fascista portuguesa na educação (a avaliação docente)
Aos Professores que, em Portugal, sabem da ideologia
obscurantista que grassa nas escolas
e nas universidades, neste tempo democrático (ainda).
Um livro, de Novembro de 1974, da autoria de Joaquim Barradas de Carvalho, com chancela da Livros Horizonte, é o pretexto para este Directo à Leitura de hoje. Conjunto de artigos publicado no célebre Portugal Democrático, este livro hoje esgotado, esclarece sobre o que foi o ambiente claustrofóbico do fascismo salazarista, verdadeiro regime assente numa política do espírito que matava o espírito e transformou a política em mero exercício obscurantista.
Em 2025, num tempo em que, por todos os lados, as democracias (ou o que resta delas), são novamente atacadas pela tenaz de um movimento internacional fascista, este livro é, para quem o leia, um óptimo momento de aprendizagem. Quem tem saudades do Dr. Salazar ou de pessoas que defenderam o seu regime ou foram por ele coroados – Cunha Leal, Supico Pinto, João Ameal, Moreira Baptista, para além, claro, de figuras gradas da instituição militar de então, o sr. Américo Thomaz (Salazar era exímio na blindagem do regime), entre tantos outros que alinharam com a ordem desse Santo Ofício de 48 anos – desconhecem, hoje, um dos traços mais persistentes e profundos da mentalidade fascista: precisamente o obscurantismo. O título do livro de Joaquim Barradas de Carvalho é, aliás, esse mesmo: O Obscurantismo Salazarista.
Logo no artigo inaugural, «Os Quadros Universitários», o autor elenca os quadros superiores que o regime fascista pôs de lado, perseguiu ou levou ao exílio. Nas matemáticas e ciências lembra Emídio Guerreiro, Laureano Barros, António Ricca Gonçalves, Ruy Luís Gomes (candidato da Oposição Democrática à Presidência da República), M. Zaluart Nunes, Bento de Jesus Caraça, Rémy Freire, Vergílio Barroso, Aniceto Monteiro, Hugo Baptista Monteiro; Aurélio Quintanilha, Ziller Peres, Flávio Resende, Lima de Faria, Henrique de Barros – todos estes homens das ciências e das matemáticas, da economia e da Física, foram perseguidos pelo fascismo. Eram investigadores do Centre National de la Rechérche Scientifique, em Paris e, muitos, figuras centrais de universidades estrangeiras. O mesmo na área das letras: professores perseguidos pela PIDE, vítimas da opressão do Estado Novo: Manuel Rodrigues Lapa, Fidelino de Figueiredo; António José Saraiva, Joel Serrão, Vitorino Magalhães Godinho (o maior historiador depois da morte de Jaime Cortesão, diz Barradas de Carvalho); Andrée Crabbé Rocha (a mulher de Miguel Torga); Duarte Leite e Veiga Simões, para além de Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Casais Monteiro, Vítor Ramos, Mário Dionísio, Óscar Lopes, Rui Grácio, José Augusto-França, Vítor de Sá, Maria Isabel Aboim Inglês, João Andrade e Silva, António Sérgio… Todos estes nomes, e muitos outros que aqui se listam, provam bem do obscurantismo do regime de Salazar: com doutoramentos e internacionalmente respeitados, das Ciências às Humanidades, da Medicina à Filosofia, nada escapou aos esbirros da política e da polícia fascistas.
Um caso é, nos sucessivos artigos sobre os intelectuais portugueses, a situação dos escritores e dos homens e mulheres de ciências nesse Portugal inquisitorial, paradigmático: o de Maria Isabel Aboim Inglês. Professora Assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi afastada. A perseguição que o regime lhe moveu foi implacável: tendo três filhos para criar, entregou-se à direcção de um colégio, propriedade sua. Necessitou do respectivo alvará e pouco tempo depois, o Ministério da Educação cassava-lhe o alvará. Fechou o colégio. Na posse do diploma de ensino particular, ensinou em colégios privados: História e Filosofia. O Ministério da Educação confisca-lhe a licença. A ex-professora de Psicologia e de História da Filosofia Antiga na Faculdade de Letras, resolve, então, abrir um atelier de modista! A perseguição não acabou: uma filha sua é proibida – através de demissão sumária – de leccionar. Amigos portugueses emigrados no Brasil, instam Aboim Inglês a deixar Portugal. Prepara-se para ingressar nos quadros de uma universidade brasileira, à semelhança de tantos daqueles que fazem parte da lista de perseguidos pelo salazarismo. O Governo fascista português recusa-lhe o passaporte! A inteligente mulher, resistente e corajosa, Isabel Aboim Inglês, morre dois anos depois dessa janela que se lhe abria… Viveu de lições particulares – clandestinas!!! – nos últimos anos da sua vida em Portugal.
Que tem esta história terrível e heroica que ver connosco? Tudo. Há formas ínvias de obscurantismo no ensino em Portugal. Formas de controlo, de corrupção invisível, de condicionamento das carreiras. O sistema de avaliação, por exemplo, para efeitos de subida na carreira é não só injusto, como absolutamente subjectivo. Tudo depende, em bom rigor, da simpatia, ou da antipatia que haja entre quem avalia e quem é avaliado. Como as correntes de transmissão são várias, prevalece, entre colegas do mesmo ofício, a ideia-feita, o diz-que-disse. É um obscurantismo assente na falácia de que um colega mais velho, só por ser mais velho e estar uns escalões acima, tem formas de avaliar, com objectividade, alguém pouco mais novo. O que se passa é que o currículo paralelo: doutoramento, actividade cultural, intervenção no meio escolar onde se trabalha, qualidade das aulas (do avaliado, que não de quem avalia), obra publicada, colaboração em jornais, revistas, especialização na sua área de saber – nada disso conta na avaliação dos professores. Resta, portanto, o obscurantismo: se não é grave o suficiente, o que tem de acontecer para ser grave? Que o Ministério, num futuro próximo, industrie as direcções para vigiar docentes que têm um percurso intelectual fora dos estabelecimentos onde tudo tem de ser formatado, da moda e, no fundo, pouco científico e crítico?
Pois bem, o obscurantismo medra na educação porque, com este sistema de cotas para as notas de Excelente (para, no fundo, alguém progredir na carreira e receber um pouco mais de salário), seja nas escolas ou nas Universidades, um qualquer professor livre e culto, ciente do valor das suas aulas, tem de – em face de quem avalie ancorado em preconceitos, em coisas que ouviu nos corredores de escolas minadas pela tirania da ignorância – render-se às evidências: poderá nas aulas assistidas fazer o que sempre fez com conhecimento das matérias e ampla capacidade didáctica e pedagógica, isso será em vão. Quando quem avalia se sente inseguro, sabendo que não domina da mesma forma, com a mesma profundidade, essas matérias, então podemos dizer que Salazar está vivo e que o exemplo de Maria Isabel Aboim Inglês, desta ou daquela forma, nos diz respeito. O «excelente» está, no fundo, reservado, e sempre, a quem for tendencialmente mais simpático e não necessariamente mais sabedor. Mais professor.
Professor, poeta e crítico literário