O mundo (a)cultural

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7 de Setembro de 2062.

No rescaldo da festa de aniversário da minha filha, e na tentativa de descansar a cabeça dos netos, saio à rua e ao descer a avenida olho para o novo ecrã de realidade aumentada por cima do antigo Condes e leio que vão estrear 7 filmes só este mês. Sete! Como é possível?

As cidades não existem, ou melhor, existem, mas só ali naquele filme. Os atores nem os conheço. Cada novo filme, cada cara nova. Enfim...

Os Óscares agora têm categorias novas: melhor programador, melhor cenário distópico, melhor guião gerado artificialmente... enfim, tudo sem pinga de gente. Sem pessoas. A humanidade reduzida ao mínimo essencial e essa pouco ou nada está no ecrã.

O mundo foi tomado de assalto pelos programadores, pelos algoritmos e, ao contrário do que se achava nos filmes e nos livros do século XX, não são robôs que andam na rua e que nos governam. Não se veem os cyborgs da Skynet na rua (The Terminator, 1984), nem tão pouco vemos o icónico agente Spooner a tentar repor a ordem no mundo (I, Robot, 2004, baseado no livro de Isaac Asimov de 1950).

Em tempos achámos graça quando as coisas se começaram a construir assim, "do nada", como diz o meu filho, com um simples toque num botão.

Primeiro foram os ilustradores, os designers e os artistas plásticos a desaparecer do mapa. Se o botão gera soluções novas, para quê pedir a estes criativos que criem!? É assim que estamos. O que é uma pena, pois podemos fazer tudo a partir de casa e cada vez mais ir ao teatro, com pessoas, daqueles a sério, em carne e osso, é que é estranho. O som dos sapatos nos palcos, as luzes nas suas caras, as sombras nos cenários, tudo isto é estranho para estas novas gerações de vinte e poucos anos.

Os arquitetos, mesmo assim, ainda se vão entretendo com o metaverso e lá vão projetando... mas casas de tijolo, essas, nem vê-las!

Depois foi na indústria do cinema que se sentiu esta grande alteração civilizacional... em que, diria eu, num tom mais jocoso, que o ator principal agora se chama "Algoritmo". Guiões gerados artificialmente, cenários que inventam cidades e atores inexistentes. Tudo programado! Programado, mas não planeado. Duvido que se tenha planeado esta mudança (a)cultural, onde tudo o que vemos, sentimos e fruímos é gerado por computadores. Ou melhor, programadores! Nada contra esta rapaziada. Conheço muitos, e bons! Dos quais consigo até enumerar alguns grandes amigos, mas esta coisa de ter uma vida automática, onde pomos umas palavras-chave, carregamos num botão et voilà!, continua a não ser para mim.

Designer e diretor do IADE - Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade Europeia

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