Não deixa de ser irónica a forma como vários políticos e os seus spin doctors se desdobram em esforços no espaço mediático para menorizar a figura de Henrique Gouveia e Melo, o almirante e ainda Chefe do Estado-Maior da Armada que, ao que parece, se terá mesmo deixado seduzir pela cadeira da Presidência da República, apesar de em tempos ter renegado a hipótese de um cargo político com um desdém que, lá está, deveria ter servido de aviso..De repente, ouvimos e lemos que “os militares não deveriam meter-se na política”, que “esses tempos já ficaram para trás”, que a “ausência de pensamento político” do almirante é uma preocupação, bem como alguns sinais de “excesso de autoridade e protagonismo”. Hoje, o trabalho de Gouveia e Melo na coordenação da vacinação da covid-19 nem sequer foi especialmente meritório, repetem uma e outra vez..Há ironias que só a política consegue oferecer com tanta intensidade. Gouveia e Melo, de quem ninguém fora do meio militar ouvira falar antes da pandemia, foi elevado a herói nacional durante a vacinação contra a covid-19. E convém lembrar porquê: porque o poder político falhou, mais uma vez, no seu papel de assegurar um serviço eficiente aos seus cidadãos. Quando a gestão política da crise pandémica se mostrou frágil e a confiança do público vacilava perante a sucessão de trapalhadas do plano inicial, recorreram a ele como o para-raios ideal..Para o Governo PS, a escolha de um militar, símbolo de rigor, disciplina e competência técnica, retirava argumentos à Oposição para responsabilizar o Executivo por eventuais falhanços. Para a Oposição, o militar com farda impecável e discurso direto, que transformou o caos inicial num sucesso reconhecido internacionalmente, serviu também como arma de arremesso para desvalorizar o mérito do Governo no processo..No entanto, agora, o “monstro” público que ajudaram a criar parece ameaçar os criadores. A possível candidatura presidencial de Gouveia e Melo surge como um fator disruptivo num cenário habitualmente dominado pelos partidos políticos. E, como indicam as sondagens, o resto da sociedade parece apreciar a ironia. Por muito spinning político que as máquinas partidárias coloquem a rodar no espaço mediático, a popularidade de Gouveia e Melo é apenas mais uma consequência de um sistema político descredibilizado que, enredado nos seus vícios, abriu portas a populismos e sebastianismos. A criatura ficou fora de controlo. Editor do Diário de Notícias