O modo e o conteúdo da Cimeira da Nato

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Ao tratar o presidente dos EUA por “papá”, o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, resumiu numa só palavra o modo como decorreu a cimeira que acaba de ter lugar em Haia. A reunião girou à volta de Donald Trump, numa translação quase perfeita, pautada de elogios e de atenções. Foi uma encenação extraordinária, que mostrou a enorme dependência e subordinação que prevalece na Europa às intuições políticas do líder americano. O objetivo central, a grande preocupação, diria mesmo, dos europeus era salvar a NATO de uma possível fúria de Trump, que levasse ao afastamento ou mesmo à retirada dos EUA da organização. Para já, parece que está tudo bem.

Os encómios passaram a fazer parte da sobrevivência da Aliança Atlântica, pelo menos durante o mandato de Trump. As promessas, que são o outro pilar da Aliança, são mais permanentes. Tornou-se um hábito assumir compromissos de Defesa que depois não são concretizados pelos Estados-membros. Em 2014, na Cimeira de Gales, ficara decidido que até 2024 cada Estado dedicaria 2% do seu PIB ao setor da Defesa. Os números mostram que apenas 22 dos 32 países cumpriram essa decisão. Agora na Haia, o compromisso acordado, com reservas claramente expressas pela Espanha, é de atingir os 5% até 2035. Este valor é irrealista, na maioria dos casos. Mesmo tendo em conta que se trata na realidade de 3,5% em despesas catalogadas como diretamente ligadas à Defesa, segundo os critérios da NATO, e 1,5% destinados a financiar investimentos em infraestruturas, como por exemplo a modernização dos caminhos de ferro ou o reforço e a construção de pontes, bem como outros projetos de dupla natureza, em que a utilização civil será, de longe, a mais importante. De qualquer modo, trata-se de montantes financeiros gigantescos, praticamente impossíveis de justificar junto dos eleitores europeus. Os cidadãos europeus, com exceção dos residentes na vizinhança da Rússia, não têm a mesma atitude que prevalece nos EUA, perante as despesas militares. As nossas sociedades pensam amiúde que a segurança e a paz são como os almoços grátis, pelo que colocam as prioridades nas áreas sociais e no conforto, não na Defesa, nem na proteção contra os regimes ditatoriais.

Mark Rutte vai agir como o auditor delegado dos EUA e analisar com atenção os orçamentos anuais dos membros da Aliança. Desta vez, penso que haverá um seguimento muito apertado do comportamento de cada Estado. Mas será muito difícil passar além do estádio das promessas. Temos aqui matéria para muitos desencontros e tensões políticas, incluindo nas arenas domésticas de vários países europeus.

A declaração final de Haia contém três outros pontos de relevo. Um sobre as ameaças, outro sobre a importância fundamental do artigo 5º do Tratado de Washington, o documento fundador, e um terceiro, sobre o apoio à Ucrânia.

Ao nível das ameaças, a declaração cita a Rússia e o terrorismo. A Rússia é mencionada como uma ameaça de longo termo. Esta nota sobre o futuro distante é ambígua. Deve ter sido o preço que foi preciso pagar pela aprovação da referência à Rússia. Trump não aceitaria, creio, um texto que referisse Vladimir Putin como um perigo imediato ou no horizonte. Trump continua convencido, embora aparente manifestar expressões de impaciência de vez em quando, que será capaz de chegar a um acordo com Putin sobre o fim da agressão à Ucrânia. E o líder do Kremlin sabe alimentar essa ilusão e fixar as suas condições. Putin compreende bem o que os dirigentes europeus parecem entender só por metade: lida-se com o megalómano da Casa Branca misturando loas com firmeza.

O artigo 5º é mencionado logo no primeiro parágrafo da declaração. A razão é fácil de entender: existem dúvidas sobre a posição americana. Será que para Trump um ataque armado a um dos Estados Aliados deve ser considerado como um ataque contra todos? O presidente americano não deu uma resposta inequívoca às muitas perguntas que lhe foram colocadas sobre o assunto. Penso que se fosse confrontado com uma realidade desse género procuraria primeiro razões para ficar de fora. Deve haver no Kremlin quem pense o mesmo sobre essa matéria.

Vários Aliados conseguiram introduzir na declaração oficial a questão importantíssima do apoio à Ucrânia. Afirmaram claramente que se trata de um direito soberano de cada Estado continuar a ajudar a Ucrânia na sua luta contra o invasor. Acrescentaram que essa assistência será contabilizada como gastos de Defesa, ou seja, entrará no cálculo da percentagem do PIB. Esse comprometimento é um dos aspetos mais positivos da cimeira. Como também foi bastante positivo o encontro bilateral entre Trump e Zelensky. Trump diz agora reconhecer a coragem de Zelensky e do povo ucraniano. Estas cimeiras têm a vantagem de proporcionar contactos pessoais muitas vezes determinantes.

Conselheiro em Segurança Internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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