O melhor plano de paz é o respeito pela Carta das Nações Unidas
Este 24 de fevereiro é um dia de aniversário triste.
Os líderes chineses parecem ser os únicos a querer tirar vantagem do impasse em que se encontram a Rússia e a Ucrânia, um ano após a decisão ilegal de Vladimir Putin de lançar uma guerra de agressão contra o seu vizinho. A China apresenta hoje aquilo a que já chamou um plano de paz, para um conflito que está muito longe de uma solução viável e duradoura. Agora chama-lhe, com mais prudência, a posição chinesa.
Escrevo estas linhas sem conhecer ainda o conteúdo desse documento. Ao que sei, deverá conter dois pontos construtivos -- o imperativo do respeito pela integridade territorial de cada Estado e a não aceitação da dimensão nuclear, desde o recurso a armas desse tipo até à interdição de operações militares nas cercanias de instalações nucleares. Mas, no essencial, a posição defende um cessar-fogo, que na realidade iria beneficiar a parte russa, porque tiraria vantagem do status quo das anexações, e dar-lhe-ia tempo para refazer a sua logística, assim como treinar e endoutrinar as centenas de milhares de recrutas recentes.
À primeira vista, a intenção chinesa visa fundamentalmente congelar o conflito, dar a vantagem ao agressor e colocar a China no centro do palco diplomático internacional, com um rótulo de promotor da paz e da sensatez. A iniciativa teria ainda o benefício de mostrar uma posição de moderação, que lhe seria útil no relacionamento com os países que olham para a China com alguma desconfiança e receio.
Para Vladimir Putin, um cessar-fogo neste momento permitiria ainda criar as condições para relançar o conflito dentro de alguns meses e obter uma vantagem decisiva antes do próximo inverno. Ou seja, a consolidação da anexação do Donbas, Zaporijia e Kherson, bem como o reforço da sua presença na Crimeia. Putin sabe, ao fim de um ano, quais são os limites da sua ambição. É um facto que gostaria de ir mais longe, mas já percebeu que os seus meios convencionais não lhe permitem responder a uma ambição expansionista imperial, a não ser que viesse a utilizar as forças nucleares, algo que está fora de questão nesta fase.
No contexto atual, a diligência chinesa é um tiro de pólvora seca, sem hipótese de sucesso. Para além do que acima escrevo, existem duas razões que matam à nascença qualquer proposta vinda de Beijing.
Primeiro, porque a visita de Wang Yi a Moscovo mostrou um novo nível de aproximação entre a China e a Rússia. Wang, que durante uma dúzia de anos fora ministro dos Negócios Estrangeiros e é agora o responsável máximo no Partido Comunista chinês para os assuntos exteriores, representa a linha política que defende em Beijing o reforço da aliança em toda a linha com a Rússia. Essa aliança é considerada fundamental para os interesses estratégicos de Beijing, agora e no longo prazo. É uma condição essencial para que num futuro mais ou menos próximo a liderança chinesa possa lançar uma operação militar contra Taiwan. Xi Jinping teria tentado retirar poderes a Wang no final do ano, mas parece não ter ganho a batalha. Como já o referi num texto recente, dir-se-ia que há uma fratura em matéria de política externa -- e não só, segundo me dizem, também no domínio dos assuntos internos -- na Comissão Permanente do Politburo do Partido Comunista da China.
Segundo, porque o nível de tensão entre a China e os EUA aumentou significativamente nas últimas semanas, depois do incidente do balão. Esta escalada vai no sentido contrário à vontade de Xi Jinping, que pretende apostar numa certa forma de equilíbrio face a Washington e a Moscovo. Para já, não o consegue. Joe Biden conhece bem o Presidente Xi e vai tentar relançar os contactos. Mas Biden também sabe qual é o sentimento dominante na classe política americana em relação à China, um sentimento que é hoje profundamente negativo. Terá de jogar com muita prudência. Isso significa, entre outras coisas, não aceitar facilmente uma iniciativa vinda de Beijing.
Na verdade, a única maneira positiva de recordar este triste aniversário é recomendar aos líderes que voltem a ler a Carta das Nações Unidas. Esse deve ser o ponto de partida: respeitar as normas que os Estados se comprometeram honrar há 78 anos, para que a tragédia de 39-45 possa ter sido a última Grande Guerra.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU