O mecanismo

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O mecanismo que o Governo apresenta ao Presidente da República, a coberto de uma ideia de escrutínio adicional do passado de putativos membros do Governo, dito "mecanismo para garantir transparência", aparenta ser, simultaneamente, uma ideia má e uma ideia perigosa.

Uma ideia má porque ameaça diluir adicionalmente a responsabilidade política do exercício, temporário, de mandatos públicos, e que inclui também a responsabilidade pela escolha e pelos resultados. Para mais podendo criar uma espécie de partilha complementar, neutralizada pela burocracia e por uma semântica bem-intencionada de "integridade e transparência", de deveres entre Governo e Presidente, tornando na prática mais presidencialista um regime que não precisa disso. E sem as consequências devidas desse resultado.

E uma ideia perigosa porquê? Porque assenta na presunção de que alimentar adicionalmente o voyeurismo mediático e a propensão para a inveja e para o exercício da pequena vingança que por aqui grassa há séculos é um dever de legalidade, até de "transparência", e um dever ético.

Não é culpa da "falta de mecanismo" que o universo de recrutamento do atual Partido Socialista para o exercício de funções políticas tem vindo a encolher extraordinariamente. É culpa essencialmente do Governo e do Parlamento: ao preferirem pagar mal aos políticos e a (alguns) titulares de altos cargos públicos e ao aceitarem e até acicatarem o clima de destruição da reputação pública, normalmente com base em suspeições, meias-verdades ou puras mentiras, de quem exerce funções públicas, misturando aldrabões com gente séria. O que sobra? Sobra o processo atual de municipalização apressada e de partidarização abusiva do Governo no recrutamento para funções nacionais, para o que a devoção do primeiro-ministro pela suma virtude da lealdade canina para consigo, em detrimento de outros atributos, também não deve contribuir positivamente.

E isto não colide, aliás, com a existência de denúncias públicas e de escrutínio adicional, aparentemente devidos, de quem recebe e não devolve, entrando na ilegalidade, indemnizações de empresas públicas; ou de quem, para mais sendo autarca, viola flagrantemente o Código dos Contratos Públicos e acha que o pode fazer com impunidade; ou de quem, tendo sido membro do Governo, opta por, sendo despedida dessa função, integrar uma pessoa coletiva a quem atribuiu subsídios e isenções fiscais, fingindo que essas incompatibilidades legais não existem.

Tudo isso deve ser claro e público. O drama é que, ao julgar-se uma pessoa no Facebook ou num jornal e não num tribunal, julgamos sempre pelo mesmo padrão e pelos mesmo factos, existam estes ou não: são todos ladrões, são todos corruptos, são todos da mesma laia. Não é verdade - uns são mais ladrões que os outros. E há uns até que, parecendo ser ladrões pela reputação entretanto criada no público, não o são - são gente honesta e decente.

Sumariando a ideia de base, a tese é a seguinte, feita na base telegráfica e essencial das teses defendidas em Coimbra até ao século XIX: quem é responsável por quem integra o Governo é o primeiro-ministro e os ministros; quando isso corre mesmo mal, são, portanto, eles os responsáveis políticos e até jurídicos, nem que seja pela vergonha alheia que causam, o que Pedro Nuno Santos percebeu e exerceu; para além disso, autarcas corruptos, funcionárias de empresas públicas venais e outros oportunistas de circunstância, que sempre existiram e existem, devem ser zurzidos pelas instituições, mas com a devida e pública demarcação intrínseca de quem é sujo e de quem é limpo.

Nada disto uma semântica de conveniência pode alterar ou reparar. Entidades da transparência, mecanismos disto e daquilo... A tristeza de tentar tornar administrativo o que é dignamente político. Estão preocupados com a execução rápida do PRR? Não deviam. A preocupação essencial é a da probidade absoluta e do desinteresse pessoal na função pública, e não a do prazo do dia seguinte. Contratai anjos - que o PRR faz-se depois.


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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