O mal francês

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Que se passa com França? - é a pergunta que por estes dias acorre ao espírito de muita gente pelo mundo fora. Com o país a ferro e fogo, Macron foi até à China e veio de lá cheio de ideias. No avião de regresso, após uma reunião de seis horas com o seu homólogo Xi, deu uma entrevista ao Politico em que, repetindo o que dissera logo à chegada a Pequim, afirmou que a China lhe dera provas do seu "compromisso com a integridade territorial e a soberania das nações". Dias depois, em entrevista à TF1, o embaixador chinês em Paris negou de forma cortante a soberania dos Estados ex-soviéticos ("não há nenhum acordo internacional que materialize o seu estatuto de países soberanos"). O Quai d"Orsay reagiu com "consternação" às declarações do diplomata chinês, mas o mal estava feito e malfeito: por um lado, e com a brutalidade habitual, Pequim não hesitara, e logo pela voz do seu embaixador em Paris, em desdizer pública e estrondosamente aquilo que o chefe do Estado francês, num gesto de boa vontade e de main tendue, afirmou à sua chegada a Pequim; por outro lado, e mais decisivamente, Emmanuel Macron saiu deste episódio fazendo uma monumental e internacional figura de palhaço, imagem tristemente espalhada urbi et orbi e que mostra bem as desditas que sofrem todos quantos, como ele, Lula e outros, pretendem afirmar-se como "vozes alternativas" aos dois blocos em rivalidade crescente: a China, de um lado; a América, do outro.

Na verdade, seria bonito e belo, útil e necessário, que na cena internacional existissem, de facto, actores independentes e equidistantes, capazes de servirem de moderadores e árbitros, de chamarem os outros à razão e ao bom senso, de lhes mostrarem que o mundo não é, nem tem de ser, uma terra a preto e branco, asperamente binária, ferozmente dividida entre dois grupos apenas, de amigos e inimigos. Simplesmente, tragicamente, a França e a Europa, ou o dito "Sul global", teimam em não perceber o seguinte: no palco internacional, não basta reclamar um papel para logo entrar em cena. Nesse mundo feito de lobos, só dominado pela força, para se ser um actor credível e respeitado é necessário ter poderio económico e militar, mostrar um empenho sério, financeiramente dispendioso e custoso, em matéria de Defesa e de Forças Armadas. Ou seja, e em síntese, França e o resto da Europa não podem andar a dizer aos quatro ventos que querem ter uma "voz autónoma" e "independente" no concerto das nações enquanto continuam a depender do escudo protector da América, que paga o orçamento da NATO (ou uma sua parcela significativa) e que agora está custeando, muito mais do que a França, uma guerra travada no coração da Europa. Questão que coloca uma outra: com o seu país em chamas por causa de uma tímida reforma da idade de reforma, que espaço ou margem terá Macron para convencer os seus concidadãos a gastarem mais com a Defesa e as Forças Armadas? E, na ausência desse investimento, que outras humilhações surgirão?

Desde há muito - desde o general de Gaulle, pelo menos - que os políticos franceses, de tempos a tempos, fazem afirmações em tudo idênticas às produzidas pelo presidente Macron ao regressar de Pequim. As suas palavras foram iguaizinhas, sem tirar nem pôr, àquelas que, por exemplo, Dominique de Villepin, então ministro dos Negócios Estrangeiros, proferiu na ONU em Fevereiro de 2003, pouco antes da desastrada e desastrosa invasão do Iraque. Com a habitual panache gaulesa, Villepin começou por proclamar que falava em nome de "um velho país" e de "um velho continente", em óbvia alfinetada aos Estados Unidos, terra que, em seu entender, era recém-chegada à civilização e ao mundo, uma espécie de nouveau riche nos refinados salões da cultura e da diplomacia. Acrescentou Villepin que o seu país, a França, tinha consigo a sabedoria e a experiência, forjadas durante séculos, que conhecera já muitas "guerras, ocupações, barbaridades", esquecendo-se de mencionar, por um lado, que muitas dessas selvajarias foram perpetradas pelos próprios franceses e, por outro, que, da última vez que França fora ocupada e sujeita à barbárie, acabou sendo libertada por tropas vindas do outro lado do Atlântico, mais precisamente da América.

As palavras de Dominique de Villepin, e agora as de Emmanuel Macron, fazem parte de uma atitude muito vulgar em França, a "obsessão anti-americana" de que falou Jean-François Revel num ensaio famoso, hoje esquecido. Com isso não se quer dizer, obviamente, que tudo quanto venha da América é formidável e positivo, ou que a Europa se deva submeter aos diktats de Washington, tantas vezes asnáticos, tantas vezes erráticos. Trata-se, isso sim, de perceber que o anti-americanismo francês, que tem servido de matriz e padrão para muitos outros anti-americanismos pelo mundo fora, é uma atitude cultural e política bem mais recente do que julgamos, pois até à 2.ª Guerra Mundial, de um modo geral, as relações entre os dois países eram cordiais e amistosas, patentes na oferta da Estátua da Liberdade à América, em sinal da gratidão de Napoleão III.

Paradoxalmente, ou talvez não, o anti-americanismo gaulês surgiu pelo facto de terem sido os americanos a libertar França do jugo nazi: como tão bem nos explicam Anthony Beevor e Artemis Cooper em Paris Após a Libertação (Bertrand, 2019), e, antes deles, não tenhamos receio de citá-los, Dominique Lapierre e Larry Collins em Paris Já Está a Arder?, o general de Gaulle conseguiu a proeza de desfilar nos Campos Elísios e, com tremenda coragem, entrar na Notre-Dame como vencedor de uma guerra que a França... perdera. Os Aliados terão ajudado à construção dessa lenda, apostando a custo em Charles de Gaulle como aquele que melhor poderia dominar o avanço dos comunistas e o resvalar de França para esfera de influência de Estaline, mas tudo não passa de uma fábula, pois, gostemos ou não, a França foi libertada por outros, não se libertou sozinha - e só por milagre, patranha e façanha pôde figurar no pós-guerra como triunfadora da 2.ª Guerra e ganhar assento no Conselho de Segurança das novas Nações Unidas.

Para conseguir tal intento - e esse é o grande mito fundador da IV e da V Repúblicas francesas - houve que camuflar, por um lado, o extenso e profundo colaboracionismo de milhares ou milhões de gauleses com os alemães; e, por outro, de sublinhar o indubitável heroísmo dos partisans da Resistência, engrandecendo, do mesmo passo, a intrepidez, a audácia e o patriotismo de Charles André Joseph Marie de Gaulle, que tivera a coragem e o génio de desobedecer aos seus superiores, fugir para Londres e de lá emitir célebres e patrióticas alocuções radiofónicas (aos microfones da BBC...). O general teve o talento de mobilizar uma nação inteira para este gigantesco processo de encobrimento e de auto-ilusão, difundido para o mundo e para a História, e através do qual, num tremendo esforço de amnésia colectiva, houve que esquecer três verdades vergonhosas: primeiro, que França tinha sido, uma vez mais, invadida e ocupada pelos alemães, repetindo o desastre de 1870; segundo, que existiu uma passividade generalizada e até um ardente colaboracionismo ante a ocupação nazi, patente em Vichy e em Pétain, mas também no carácter claramente minoritário dos que ousaram juntar-se à Resistência (numa atitude bem contrastante, diga-se, daquela que agora ocorre com os ucranianos); em terceiro lugar, França tinha de fazer esquecer que fora incapaz de se libertar por si própria e que, quando de Gaulle desfilou em Paris, em Agosto de 1944, fê-lo amparado pelos americanos, só a custo convencidos a redireccionar tropas para a capital francesa, a qual nem fazia parte dos seus planos iniciais de combate.

Para restaurar o orgulho nacional ferido, havia que esquecer, portanto, o invasor germânico, o colaboracionismo autóctone e o aliado yankee e, na construção deste mito (ou desta "narrativa", como agora se diz), era essencial um enorme trabalho de desmemória, por um lado, e de auto-glorificação colectiva, por outro. Esforço que Charles de Gaulle liderou como ninguém, pois a sua personalidade e pose a isso tão bem se prestavam, e que encontra eco, entre tantos outros momentos, nas palavras tonitruantes com que, em Dezembro de 1964, André Malraux recebeu os restos mortais de Jean Moulin no Panteão Nacional - o célebre "Entre ici, Jean Moulin, avec ton terrible cortège..." -, numa cerimónia, de resto, meticulosamente encenada para exaltar a grandeur de la France e, com ela, favorecer os objectivos políticos do general-presidente (no ano seguinte, em 1965, iriam realizar-se eleições presidenciais, De Gaulle necessitava de sinalizar alguma aproximação à esquerda e, sobretudo, de responder às críticas dos membros do Club Jean Moulin, como Daniel Cordelier, François Mitterrand e Servan-Schreiber, que jamais se cansavam de falar no "golpe de Estado" que o levara ao poder em 1958). Ao mesmo tempo, De Gaulle tirava França da estrutura militar da NATO, reconhecia o governo de Mao Tsé-Tung, atacava os EUA num périplo pela América Latina, visitava Moscovo, onde hoje tem uma estátua, inaugurada em 2005 por Jacques Chirac.

Apesar dos encontros e desencontros da IV e da V Repúblicas, o anti-americanismo enraizou-se na cultura política francesa, tornou-se um dos seus mais poderosos elementos identitários e unificadores, tanto à direita como à esquerda, seja entre os reaccionários nostálgicos da vieille France, conservadora e autêntica (o pays réel, de que falava Maurras), seja entre os comunistas, os quais agiram, como sempre, como quinta coluna de Estaline, lançando a pomba branca de Picasso e o movimento "pela paz", favorável aos soviéticos (o seu líder, Frédéric Joliot-Curie, receberia em 1950 o Prémio Lenine da Paz), e atacando tudo quanto cheirasse a invasão cultural americana, do cinema à Coca-Cola. Em Paris Após a Libertação, Anthony Beevor e Artemis Cooper contam que, na imprensa do PCF do pós-guerra, a beberagem yankee era apresentada como uma droga letal, tal qual também Salazar pensava, numa curiosa convergência entre a sua visão arcaica do mundo e a dos comunistas. "Todas as tardes, uma carrinha da Coca-Cola pára à entrada da Place des Innocents, no 1.er arrondissement; o motorista distribui garrafas às crianças, que não estão acompanhadas e que consomem a bebida no local", dizia um jornal do PCF em tom alarmista e alarmado, como se descrevesse uma operação clandestina da CIA ou do Pentágono.

O sentimento anti-americano persiste nos nossos dias e, se não o percebermos, não conseguiremos compreender de todo a política internacional do nosso tempo, pois, no fundo, é esse sentimento que, entre outros factores, explica muitas decisões absurdas da Europa: a abertura em excesso à China de Xi Jinping (a quem Portugal vendeu a sua rede eléctrica...), o malfadado gasoduto do Nordstream e a dependência energética face à Rússia de Putin. Tal sentimento ficou exemplarmente demonstrado há um par de anos, quando, em Agosto de 1999, os agricultores da Confédération Paysanne, liderados por Joseph "José" Bové, decidiram destruir um ou vários restaurantes da cadeia MacDonald"s, símbolos do imperialismo yankee e da intragável fast-food. Na altura, os protestos dirigiram-se contra a Organização Mundial de Comércio, em batalhas travadas em Seattle ou na França profunda. Contudo, não houve grande clamor - aliás, clamor nenhum - quando, anos volvidos, em Dezembro de 2001 (simbolicamente, pouco depois dos ataques terroristas de Nova Iorque), a República Popular da China aderiu à OMC, o facto histórico mais decisivo para compreendermos o tempo que hoje vivemos, Trump incluído. Quem ler Regresso a Reims, o relato autobiográfico de Didier Eribon (Dom Quixote, 2019), perceberá os efeitos políticos da desindustrialização europeia: com o fecho da fábrica em que trabalhava, o pai de Didier, um comunista da linha dura, ultraconservador, homofóbico e xenófobo, nacionalista até à medula, transitou sem problemas para a Front Nacional, a única força política que dava voz ao seu ressentimento contra as elites corruptas. Mitterrand faria o resto na promoção da extrema-direita (com a qual, de resto, sempre se deu muito bem) e, em 1986, para enfraquecer o centro gaullista, introduziu a representação proporcional, dando um impulso decisivo para a ascensão do partido de Le Pen.

Naquela sua luta anti-EUA, José Bové foi louvado como um "David contra Golias", palavras da época. Francis Fukuyama chamou-lhe "a única coisa que realmente mexe a França", e aquele agricultor de cachimbo e bigodes à Astérix tornou-se um herói nacional instantâneo, amado à esquerda e à direita, sobretudo, ou acima de tudo, pelo que representava na defesa intransigente da "autenticidade" gaulesa contra a invasão de capital estrangeiro, leia-se americano. É comovente - e até louvável, até certo ponto - o apreço que os franceses dedicam aos seus produtos nacionais, sobretudo agrícolas, encarados como expressão de uma identidade secular ameaçada pelas tenebrosas e desumanas forças de um "progresso" sem nome e sem rosto. Não por acaso, numa das sua muitas boutades, o general de Gaulle disse um dia ser impossível governar um país com 246 variedades de queijo, frase que caiu no anedotário, mas que encerra uma verdade bem funda: a extrema dificuldade em conciliar tradição e modernidade numa nação tão orgulhosa da sua História, mas ao mesmo tempo tão ambiciosa e sedenta de um lugar de destaque num mundo em acelerada mudança, cada vez menos ocidental e europeu; um grande país com muitos países dentro, agora mais diverso ainda, devido à imigração e ao islamismo em flecha; uma terra feita de extremos, avessa a moderações e consensos, que oscila entre o máximo absolutismo do poder e o eterno revolucionarismo da rua. A juntar a tudo isso, uma grande tradição de violência, seja do Estado contra os cidadãos, seja dos cidadãos contra o Estado. Na noite de 17 de Outubro de 1961, a França democrática massacrou entre 150 a 300 argelinos no coração de Paris, numa razia organizada pelo prefeito da polícia Maurice Papon, um homem com fundas culpas no Holocausto. Muitos cadáveres foram lançados ao Sena nessa noite sangrenta e vergonhosa, a "Batalha de Paris" que muitos tentam esquecer e que, em 2011, Nicolas Sarkozy recusou assinalar.

As afirmações snobes de Dominique de Villepin, que atrás se citaram, dão o mote de abertura a um dos melhores livros que conheço sobre França e os franceses, chamado How the French Think, An Affectionate Portrait of an Intellectual People (Penguin, 2015), de Sudhir Hazareesingh, professor em Oxford. No discurso de Villepin na ONU, no qual o MNE francês fez tiradas grandiloquentes sobre o papel da comunidade internacional - e do seu país, claro - como "guardiã de um ideal" ou "guardiã de uma consciência", e em que falou de "responsabilidades imensas" e de uma "enorme honra", Hazareesingh detecta vários caracteres do style français: a verve retórica e a masculinidade sedutora; o apelo à razão e à lógica cartesianas, assente em oposições binárias (conflito vs. harmonia; egoísmo vs. interesse comum; moralidade vs. poder); o apelo a uma sabedoria antiga, ancorada em séculos de experiências traumáticas e dolorosas; um optimismo subliminar, assente na convicção inabalável da superioridade de França face às demais nações.

O "pensamento francês" clássico, chamemos-lhe assim, o de Pascal e Descartes, desenvolve-se a partir de uma incessante busca de limpidez e clareza, de precisão verbal e mental, de apreço por noções abstractas e gerais ou, se quisermos, de conceitos a partir das quais se deduzem, por inferência lógica, as soluções para todos e quaisquer problemas. Entre esses conceitos, e só para nomear alguns, encontram-se noções como monarquia, razão, vontade geral, proletariado, nação, patriotismo, tradição, inclusão, que os franceses discutem à exaustão, pois atribuem-lhe um significado quase sacral e metafísico, julgando serem essenciais para o governo das suas vidas e para a obtenção da felicidade humana. Ao mesmo tempo, há em França uma enorme paixão pelo holismo, que leva os franceses a tomarem e abordarem os problemas na sua totalidade, ao invés de se concentrarem nas suas manifestações contingentes. É a essa luz, diz-nos Sudhir Hazareesingh, que um filósofo como Michel Lacroix, por exemplo, é capaz de explicar o seu patriotismo a partir, e cita-se, de um "entendimento ontológico da francesidade". É a essa luz que devemos entender o carácter sacrossanto da tríade liberdade-igualdade-fraternidade ou a atracção fatal pelo verbo e pela palavra. Todos os anos, realiza-se em La Charité-sur-Loire, sob os auspícios de Erik Orsenna, um Festival du Mot, o "Festival da Palavra", tal o amor dos gauleses pelo verbo, por paroles, paroles, paroles.

Nas vésperas do Dia-D, e preparando o Desembarque na Normandia, as autoridades militares inglesas distribuíram pelos soldados um manual de instruções sobre como deveriam lidar com os nativos. Num dos pontos desse manual dizia-se: "Muito mais do que nós [britânicos], os franceses apreciam uma boa discussão intelectual. É frequente pensarmos que dois franceses estão a ter uma querela violenta na rua, quando, na verdade, se encontram ambos a debater apenas uma qualquer questão abstracta."

Um estranho país, em suma, caricaturado, talvez em excesso, pelos anglo-saxónicos (leia-se o hilariante A Year in the Merde/Um Ano em França, de Stephen Clarke), onde os empregados de café entretêm os clientes com longas dissertações sobre o estado do tempo ou a metafísica. O verbo, aliás, dá para tudo, até para justificar o injustificável: quem duvide, veja o modo inconcebível como, na série Quarto 2806, da Netflix, o socialista Jack Lang, ex-ministro da Cultura, justifica os crimes sexuais de Dominique Strauss-Kahn com base na sua "virilidade" e na sua "galanteria" (as quais, pelos vistos, legitimavam a violação de uma empregada de hotel em Nova Iorque...).

Não admira, pois, que tenha sido em França, mais do que em qualquer outro lugar, que se tenha firmado a noção de "intelectual público", na sequência do Affaire Dreyfus ou até antes disso. É enorme, de facto, a proeminência que alguns savants ou vedetas do espírito alcançam em terras gaulesas, convidados diariamente pelas televisões para se pronunciarem sobre tudo e mais alguma coisa, em programas de "debate" que duram horas e horas. De novo, De Gaulle: quando, no Verão de 1968, Sartre foi detido por desobediência nas manifestações de Paris, o presidente reprovou o gesto, dizendo "nunca se prende Voltaire". Acontece, porém, que o estatuto mítico de que gozam os intelectuais não tem sido bom, nem para eles, nem para a França, que há muito sabe - e tem dilacerante consciência disso - que perdeu uma larguíssima parte da sua influência cultural num mundo que, devido à internet, é cada vez mais anglófono e anglicizado.

Há dias, tive uma experiência curiosa, em parte dolorosa: por causa de um texto que escrevi sobre Boris Vian, para servir de prefácio ao seu Manual de Saint-Germain des Près, tive de trocar alguma correspondência com os titulares dos seus direitos de autor. De França, da velha França, mandaram-me mensagens em inglês, imagine-se, e assim prosseguiu a conversa electrónica de parte a parte, em mais um eloquente sinal dos tempos e insofismável indício do déclinisme francês.

É também sintomático que, na actualidade, o intelectual francês de mais nomeada e fama, aquele que melhor capta as taras da sua pátria, seja um homem como Michel Houellebecq. Como é sintomático que, mesmo um intelectual de primeira grandeza como Marcel Gauchet, quando chamado a analisar o malheur français, seja incapaz de ir muito além da espuma dos dias e do comentário de actualidade, como sucede no seu livro de entrevistas Macron, les leçons d"un échec. Compreendre le malheur français II (Éditions Stock, 2021).

Também entre nós os intelectuais se manifestam, seja no extremo da esquerda, seja no da direita. No Facebook, dizem-me, Raquel Varela saudou as ostras bretãs e os desacatos de rua, afirmando que estes últimos são, no fundo, uma reivindicação pelo direito a todos comerem ostras (como ela, uma privilegiada do marisco), o que é seguramente legítimo, mas ambientalmente arriscado. Na outra ponta do espectro, Jaime Nogueira Pinto, ao escrever no Observador (Ventos de França, 22/4/2023), entreviu, e bem, nas manifestações presentes e no caos reinante a chance há muito aguardada para Marine Le Pen alcançar finalmente o Eliseu. É nisso que deveriam pensar os que agora incendeiam França e a invadem de lixo, no perigo mais do que evidente de uma chegada da extrema-direita ao poder, o que será um desastre para a democracia na Europa e no mundo, pois Marine não é Meloni, nem a França é a Itália.

Para o meu amigo Ricardo Soares de Oliveira
que há dias, indo arguir um doutoramento à Sorbonne,
mal conseguiu entrar no edifício, tal o lixo acumulado em seu redor.

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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