O mais que previsível flop do arrendamento acessível

Lançado em 2019, o programa anunciado como solução para criar um mercado de rendas sensatas tem 335 contratos assinados. O governo admite que não foi um sucesso mas diz que não sabe como resolver. Vai-se a ver e não é assim tão difícil perceber o que pode melhorar.
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O nome prometia e a ideia também. O programa de arrendamento acessível (PAR) propunha-se colocar no mercado casas com rendas pelo menos 20% abaixo do valor médio para a localização e tipologia respetivas, através do "perdão" dos 28% de imposto.

O busílis, como sempre, veio nos detalhes. Logo que o programa foi lançado e apareceu um simulador, coloquei os dados de um apartamento na zona de Lisboa para perceber como a coisa funciona.

Logo para começo de conversa concluí que para um T4, ou seja, um locado com quatro quartos (era o caso) o PAR exigia que o número de pessoas do agregado arrendatário fosse equivalente: uma pessoa por quarto - pelo menos. Assim, se duas pessoas procurarem uma casa com dois quartos e duas outras divisões (para teletrabalhar, por exemplo), ou um casal com uma criança queira uma divisão adicional para o que lhe aprouver, não podem candidatar-se àquela casa. E solitários, suponho, irão corridos a T0 ou, no máximo, a T1, que ninguém os manda viver sozinhos.

Depois desta incompreensível intromissão na vida privada dos possíveis arrendatários (como será, por exemplo, com pais separados que tenham os filhos de 15 em 15 dias?) que ainda por cima não tem em consideração a dimensão - há casas com 5 ou mesmo 7 divisões muito pouco espaçosas -, vem outra: os contratos têm de ser no mínimo de cinco anos. Percebe-se a intenção de dar estabilidade aos arrendatários, mas tanto para proprietários como para os próprios inquilinos a duração assusta. Por que raio não admitir a possibilidade de um mínimo de dois anos?

E porquê um sistema que apenas admite um procedimento concursal, no qual o proprietário coloca a habitação numa plataforma à espera de interessados e os candidatos a inquilinos ali se inscrevem por sua vez? Pensemos nas situações em que alguém arrendou uma casa, viu os seus rendimentos diminuírem mas gostaria de ali permanecer pagando menos. O proprietário facilmente poderia baixar a renda em 20% ou mais se lhe fosse dada a possibilidade de poupar no imposto. Não ocorreu a ninguém no governo, quando há tanta gente em aflição para pagar a renda, a urgência de flexibilizar? Acham melhor que as pessoas peçam moratórias ou abandonem as casas?

Há ainda a questão dos seguros obrigatórios. Como é sabido, não existiam seguros de renda no mercado, o que desde logo engulhou o arranque do PAR. Agora já há. Para o proprietário "segurar" uma renda de 500 euros, ou seja, garantir-se contra a eventualidade de o inquilino deixar de poder cumprir a sua obrigação, terá de despender cerca de seis euros mensais; já o inquilino, para o mesmo efeito, larga mais do dobro. Em conjunto, pagam cerca de 228 euros anuais. Em cinco anos serão 1140 euros; naturalmente o valor aumenta para rendas mais elevadas. Não fui ler as "letras pequenas" dos contratos (por exemplo, o que sucede se o inquilino sair antes do fim do prazo?), nem o que é exigido para os celebrar. Mas cheira-me que poderá estar também aqui um dos motivos do falhanço do PAR.

Resta falar dos valores da "renda acessível". Numa série de trabalhos muito interessantes sobre o tema da habitação, o Público analisou os preços máximos do PAR em três zonas do país e comparou-os com os do programa Porta Jovem 65, concluindo que na zona de Coimbra é muito mais proveitoso para os proprietários aderir ao segundo: um T1 no PAR pode ser arrendado por 399 euros enquanto no Porta 65 pode chegar aos 446, acima até do valor médio de mercado. Alguém no Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana não anda a fazer bem as contas.

Às vezes a ideia que dá é que os programas não se fazem para resolver problemas, mas para se poder dizer "fizemos um programa, olha que lindo". Se ao fim de mais de um ano o que foi apresentado como solução não soluciona nada, como é evidente no caso do PAR, é porque está mal desenhado. E, ao contrário do que disse em entrevista ao Negócios a secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves - "Não sei como tornar mais atrativa a renda acessível" -, não parece assim tão difícil melhorar. A não ser, claro, que se esteja naquela de achar que é a realidade que ainda não percebeu.

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