O livro do vazio e da falha
Uma amiga e colega na faculdade ofereceu-me há pouco tempo, creio que com intuitos psicotrópicos e de apaziguamento para com a vida, um livro extraordinário. Stoner, de John Williams, escrito em 1965 e publicado entre nós apenas em 2014, pela Dom Quixote. Sem sucesso editorial imediato, não deixou de ser descrito pelo The New York Times, décadas depois de publicado, como o "romance perfeito" ou, no dizer de um crítico, "o melhor romance que ninguém leu". Foi também eleito como o livro do ano de 2013 pelos leitores da Waterstones, o que não deixa de ser curioso, tratando-se de um livro de 1965... Mas, sim, o mundo dos livros e da literatura tem diversas destas coisas.
O que é Stoner? É a história de vida de um professor universitário norte-americano de Literatura Inglesa, William Stoner, desde a sua chegada à universidade como estudante pouco antes da Primeira Guerra, até ao seu fim académico, décadas passadas, sem nunca daquela ter saído e ela dele. Um homem inequivocamente banal, numa universidade de segunda linha, com poucas obras escritas e pouco lidas, com um quotidiano rotineiro, preenchido por aulas, alunos, colegas, deveres profissionais e desilusões familiares, pequenas traições, censuras, paixões, vinganças.
É também a história de certas instituições, que, como a universidade, vivem essencialmente de tradições, preconceitos e convicções, umas e outros irrelevantemente certos ou errados. Onde a generalidade das pessoas que por elas passam acabam por ser instrumentais perante uma ideia que afinal não conhecem, à qual se habituam, que para outros seria absurda, mas que, mesmo nesse desconhecimento, é uma ideia que alguns constroem laboriosamente, tijolo após tijolo, dia após dia, e se torna a sua própria razão de vida.
Mas é especialmente a história, creio, de que a unicidade e a personalização do tempo que nos habituámos a ver como o nosso dever e alegria neste mundo são, de facto, ridículas. E, nessa perspetiva, a universidade é apenas uma boa imagem, um bom pretexto, com o seu aparato de saber e de função e a pretensão de mensagem e de futuro que finge institucionalizar. Outra função e outras entidades, outras pessoas e outros dramas, poderiam ali substituí-la, desde que combinadas nelas as doses certas de falsa predestinação, de vindicta sobre o mundo e de vaidade, no que a universidade, qualquer universidade, é sempre asilo.
Ao ler-se Stoner, recorda-se I Am Charlotte Simmons, de Tom Wolfe (2004), que, se fosse um grande livro, poderia ser um reverso de Stoner, agora pela visão dos alunos e metade de um século depois. Mas Stoner não tem a torrente imparável de futuros banqueiros de investimento nem equipas de desporto universitário nem muito álcool e cenas epidérmicas. Stoner tem nada. Tem uma profunda ausência de qualquer coisa desde a sua primeira página e consegue mantê-la até ao fim. Tem a ausência que preenche como água qualquer fenda, que alastra devagar, mas de forma precisa, até recobrir tudo e todos. É um livro sobre todas as falhas e o seu preenchimento pelo vazio. E, pelo meio, existem pessoas, cuja única glória objetiva é deixar de ser.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa