O Licenciamento Zero

Publicado a

Num país onde a burocracia tendia a desmotivar as iniciativas empreendedoras, o regime do Licenciamento Zero, em 2011, tal como antes a Empresa na hora, surgiu como uma lufada de ar fresco. Imaginem o que era preciso então, para abrir um simples café com uma esplanada: para cada elemento – mesas, cadeiras, toldo, menu, floreira, arca de gelados ou até uma abelha maia para entreter os mais pequenos – exigia-se uma licença específica.

Cada autorização requeria formulários distintos, vistorias e uma paciência infinita para lidar com a inércia burocrática. Não surpreende, portanto, que muitas esplanadas existissem na clandestinidade ou simplesmente não chegassem a abrir.

O que trouxe de novo o Licenciamento Zero? Não alterou as regras urbanísticas – continua a ser necessário respeitar a área de passeio que pode ser ocupada, a altura e até a cor do toldo, o tipo de mobiliário permitido pelo Município, especialmente em zonas históricas. A verdadeira revolução foi procedimental: tudo passou a ser tratado num único portal, onde o comerciante paga as taxas devidas e assume a responsabilidade pelo cumprimento das normas publicadas pelo Município. A fiscalização mantém-se, assim como as eventuais sanções para os infratores.

Esta foi uma mudança de paradigma para atividades económicas de baixo risco. Substituiu-se um sistema moroso, desconfiado e pesado por um regime mais simples, transparente e menos vulnerável a “pequenos favores”, para não usar uma palavra mais forte.

É por isso surpreendente ouvir o Presidente da Câmara de Lisboa defender o fim deste regime, apontando-o como responsável pela proliferação de estabelecimentos do mesmo ramo em determinadas ruas da cidade. Este argumento não colhe: no sistema anterior, o licenciamento também não podia discriminar por tipo de negócio.

Que alternativa propõe o Autarca? Estabelecer quotas específicas como “três cafés por rua, duas lojas de souvenirs, quatro de vestuário”? Permitir que as autarquias passem a recusar discricionariamente certo tipo de comércio? Decidir quem pode abrir estabelecimentos e o que podem vender (se for português de origem sim e se não for não)? Seriam tais soluções compatíveis com a liberdade de iniciativa económica e a igualdade perante a lei consagradas na Constituição? Tais ideias parecem absurdas!

Existirão instrumentos de planeamento comercial alternativos? Admito que sim, sobretudo com base em incentivos. Poder-se-iam também estabelecer quotas gerais para atividades comerciais em zonas históricas. Contudo, isso pode ser uma limitação desproporcionada da liberdade comercial e da concorrência. Portugal não é, nem deve aspirar a ser, uma economia planificada.

Quanto ao argumento dos “estabelecimentos de fachada” e “negócios escuros”, isso é e sempre foi matéria para as autoridades policiais, não uma questão de licenciamento comercial, seja qual for o regime. Aliás, essa é mesmo a típica mentalidade de burocrata. Perante um caso problemático ou fraudulento, introduz-se uma nova camada de burocracia sobre todos os restantes (mais uma licença, um papel ou um controlo).

Quando a OCDE elogiou e a Comissão Europeia premiou Portugal pela simplificação de procedimentos e pela redução da burocracia que o Licenciamento Zero veio trazer, é desconcertante ouvir um Autarca, que se diz liberal, defender o regresso a um sistema obsoleto. Seria, como diz o povo, “passar de cavalo para burro”.

O Licenciamento Zero representa uma conquista da modernização administrativa portuguesa. Reverter este progresso não seria apenas contraproducente, mas também revelador de uma visão retrógrada da economia e do papel que o Estado desempenha na sociedade.

Ex-deputada ao Parlamento Europeu

Diário de Notícias
www.dn.pt