O legado do papa Francisco

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Qual é o legado que nos deixa Francisco, o papa que veio do fim do mundo? A análise, para ser completa, tem de olhar para as diferentes dimensões do papado. Por um lado, a vertente temporal, enquanto soberano da última monarquia absoluta da Europa e figura relevante na geopolítica mundial; e, por outro, a espiritual, como líder da Igreja Católica, que, juntamente com as suas irmãs do oriente, teve origem nos tempos apostólicos e é uma das mais antigas instituições em funcionamento em todo o mundo.

Na vertente temporal, o papa Francisco deixa um legado largamente positivo. Sob a sua liderança, a Igreja recuperou uma boa parte da credibilidade que perdera durante a primeira década do século. Francisco fez aquilo que esperavam, em larga medida, os colegas cardeais que o elegeram no conclave de 2013: reformou a cúria, melhorou a transparência das finanças da Igreja e “desromanizou-a”. Porém, foi ainda mais longe: nomeou mulheres para posições chave no governo do Vaticano e foi implacável na questão dos abusos sexuais praticados por membros do clero, pondo fim a décadas de uma vergonhosa política de silêncios e encobrimentos. Foi, ainda, um crítico feroz das desigualdades sociais e de uma economia globalizada que “mata”, segundo dizia para escândalo de muitos.

Francisco colocou a Igreja do lado dos pobres e dos excluídos e procurou contribuir para a paz e o diálogo entre diferentes culturas, religiões e civilizações, com uma “diplomacia da esperança” que colocou a ênfase na justiça, no perdão e na defesa dos mais fracos. Tal como o seu antecessor João Paulo II, que elegeu o ecumenismo e a defesa da dignidade humana como prioridades, Francisco adquiriu uma autoridade moral que lhe permitiu utilizar o soft power da Santa Sé para intervir no plano internacional e contribuir para a paz e o diálogo entre diferentes civilizações e culturas. Esta foi, sem dúvida, a grande vitória de Francisco no plano temporal, apesar de alguns altos e baixos ao longo dos últimos 12 anos.

No plano espiritual, o grande legado de Francisco foi a abertura da Igreja a todas as pessoas - sob o feliz lema “de todos para todos” - o que lhe valeu críticas por parte de sectores católicos que consideram que o papa fez tábua rasa de princípios milenares. Alguns chegaram mesmo a acusá-lo de heresia, devido às posições que tomou em relação à comunhão dos divorciados e recasados e à benção de uniões homossexuais. Porém, em questões de doutrina, Francisco não era menos conservador que os seus antecessores, nem mesmo quando comparado com João Paulo II (que, aliás, admirava): o papa considerava pecaminosas as relações fora do matrimónio cristão, que continua a ser apenas entre homem e mulher; condenava o aborto, era contra a eutanásia e acreditava na existência do céu, do purgatório e do inferno. Afinal, é bom lembrar que, se forem coerentes, todos os papas são cristãos e católicos, por muito que isso confunda as análises que dividam a Igreja entre “progressistas” e “conservadores”.

Onde Francisco foi realmente disruptivo foi sobretudo em questões de organização interna da Igreja, na nomeação de cardeais de outros continentes (refletindo o peso crescente dessas geografias onde o catolicismo continua a ganhar seguidores) e na busca de soluções pragmáticas que, sem romper com regras que remontam aos tempos de Cristo - como a indissolubilidade do matrimónio -, permitissem acolher todas as pessoas no seu seio. O papa entendia que o vazio espiritual em que grande parte do Ocidente se encontra não será sustentável no médio e longo prazo e que, se não for um catolicismo renovado a preencher esse espaço, outras crenças religiosas ou ideologias laicas o farão. Para que o catolicismo possa desempenhar esse papel, Francisco defendia que a Igreja deve utilizar uma linguagem simples e acessível, que ofereça um sentido para as vidas das pessoas comuns e condene o pecado, mas sem deixar de amar o pecador. Isto é algo que Francisco sempre procurou fazer desde o tempo em que era arcebispo de Buenos Aires, quer estivesse a falar de conceitos teológicos complexos, quer a dar conselhos simples sobre a vida em família.

Mesmo que o sucessor de Francisco venha a ser uma personalidade mais “conservadora” - para garantir a união dos católicos após as mudanças dos últimos anos - dificilmente poderá reverter as medidas que o papa argentino implementou no sentido de uma Igreja mais aberta, inclusiva e representativa. Este será, provavelmente, o maior legado que Francisco deixou à Igreja e ao mundo.

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