O legado curdo de Erdogan
O fim dos impérios costuma ser traumático, basta pensar no Português, com a descolonização de África a ser feita numa questão de meses, depois de anos de guerra e de uma presença de séculos. Aconteceu também ao Império Otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial e que deu origem à República da Turquia. Só que ao contrário de Portugal, Estado-Nação que voltou às suas fronteiras medievais no extremo ocidental da Europa, a moderna Turquia não só perdeu territórios como teve de se afirmar contra a vontade das potências, que ocuparam Istambul e retalharam a Anatólia. Mesmo depois da vitória de Mustafa Kemal Ataturk, numa guerra de independência sobretudo contra os gregos e seus patronos ocidentais, o país viu-se rodeado por uma geografia hostil, por países ex-colónias e num contexto de ódios históricos.
O centenário da república foi celebrado em 2023. Se Ataturk, que morreu em 1938, continua a ser o pai da independência, e também o líder que decretou o laicismo e a ocidentalização a um povo muçulmano com raízes longínquas nas estepes asiáticas, as últimas duas décadas estão associadas a outro líder incontornável, Recep Tayyip Erdogan.
Como primeiro-ministro e depois como presidente, Erdogan deixou já a sua marca de duas formas: devolvendo estatuto ao Islão e forçando os generais a retirarem-se da política. Esta última medida mereceu o aplauso da União Europeia, clube a que a Turquia é candidata de longa data (mas sem convicção da primeira e, depois, também da segunda).
Igualmente aplauso mereceu, de início, a abertura em relação às reivindicações da minoria curda, 15 a 20% dos 85 milhões de turcos, concentrada no leste da Anatólia, mas muito presente via migração em Istambul, de longe a maior cidade, mesmo que Ancara seja a capital da República. Direitos culturais e linguísticos foram reconhecidos, e houve negociações para trégua com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), mas a guerra acabou por regressar, assim como os problemas dos eleitos curdos com a Justiça. Também o sucesso militar das milícias curdas sírias ligadas ao PKK direcionou, a dada altura, os militares turcos para uma segunda frente.
Hoje, dia em que se conheceu o baixar de armas para o PKK, o cenário para a Turquia parece mais otimista, mesmo que a mistura entre Justiça e Política continue (ver a prisão do presidente da Câmara de Istambul, potencial candidato presidencial do campo laico). Erdogan pode até reclamar vitória em relação à guerra civil na Síria e também um papel de mediador entre a Rússia e a Ucrânia. Membro problemático da NATO nos últimos anos, beneficia agora igualmente da crise nas relações transatlânticas para reforçar a cooperação militar com os países europeus. A própria economia (umas das 20 maiores do mundo) dá bons sinais.
O que o presidente fizer com este fim de 41 anos de luta armada pelo PKK, resposta ao apelo do seu líder histórico preso desde 1999, contará muito na avaliação do legado que deixará aos turcos.
Os curdos estão repartidos por Turquia, Síria, Irão e Iraque, mas tanto a repressão dos governos dos quatro países, como as diferenças tribais, a oposição entre progressistas e conservadores, e as rivalidades pessoais entre líderes impediram sempre a construção de movimento unificado.
Ataturk, campeão do laicismo, não conseguiu a plena integração dos curdos no projeto nacional da Turquia, mas Erdogan, que promove os valores de um Islão que é comum a turcos e curdos, tem agora uma excelente oportunidade de fazer a diferença. Não será fácil, muitas questões estão em aberto, mas há uma janela de oportunidade que exige coragem, mas também um instinto político que o presidente turco já deu bastantes provas de possuir e que faz dele uma figura incontornável em tantos cenários geopolíticos, dos Balcãs ao Cáucaso, do Médio Oriente ao espaço ex-soviético.