O jardim onde a pátria se bifurca
"Um jardim e uma paisagem são fruto de conceções e projetos e nunca de arranjos ou decorações, pelo que a sua grandeza e beleza resulta no que lhes é essencial na medida certa."
Gonçalo Ribeiro Telles
Caberá todo o som e toda a fúria da nossa história no arranjo de um jardim numa praça de Lisboa? Para alguns parece que sim. Aquelas plantas secas e depauperadas que, ao que parece, nos mostravam no vegetal as armas das cidades coloniais para nossa instrução e edificação foram ameaçadas por um arranjo inovador, demasiado inovador, da responsabilidade, aliás, de uma das pessoas que mais entendem de jardins em Portugal, a arquiteta Cristina Castel-Branco.
No final de Candide, Voltaire tira uma conclusão cética e derrotista: afastemo-nos das lutas do mundo, voltemo-nos para dentro de casa, "il faut cultiver notre jardin". Em Lisboa, como as aventuras aqui de Candide aliás o prenunciavam, nunca poderia Voltaire procurar a intimidade num jardim. Cada sebe aqui proclama um herói, cada buxo celebra uma conquista, cada flor é um suspiro da pátria. Estamos bem longe do "a rose is a rose, is a rose" da modernista Gertrud Stein. Aqui cada rosa é uma saudação ao passado glorioso que nos é recordado não pelo estudo da história, que não faz falta, não pela leitura dos poetas, que é supérflua, mas pela jardinagem. Como as catedrais eram na Idade Média a Bíblia dos pobres, entre nós é nos jardins e nos seus arranjos florais que haurimos o santo misticismo da pátria. Cada jardineiro tem nas suas mãos a própria afirmação nacional.
Não, o ridículo não mata. Demolir o Padrão dos Descobrimentos seria por certo a mais ridícula resposta a oferecer ao esplendor floral do nosso nacionalismo. Por cada flor que se erga a saudar a pátria, caia uma pedra a maldizer o império. Ao patriotismo vegetal responderá o progressismo mineral. A velha ideologia patrioteira cairá com o desmantelar dos pedregulhos e o desfazer das estátuas. E por cada buxo que possa renascer, haverá uma muralha que deverá ruir. Estátuas, cuidai-vos!...
Eça de Queirós ensinou-nos há muito tempo, numa polémica com Pinheiro Chagas, que o verdadeiro patriotismo é cuidarmos e preocuparmo-nos com os portugueses nossos contemporâneos, com o estado presente das nossas coisas e das nossas gentes e não com a ostentação, a propósito e a despropósito, das passadas glórias. Lendo aquela polémica, verificamos, porém, que tanto Eça como Chagas concordam que houve "ignomínias" (falava-se assim nesses tempos) no nosso passado colonial. Feliz século XIX! Estivessem eles hoje a afirmar tais coisas e logo o coro reprovador dos patriotas se faria ouvir, rotundo e rouco...
A nossa pátria não vive pelas flores de um jardim e os monumentos de pedra não celebram as ignomínias que infligimos, mas todo o passado que tivemos, no seu esplendor e na sua miséria. Walter Benjamin dizia que "todo o monumento de civilização é ao mesmo tempo um monumento de barbárie". A glória e a barbaridade são as duas faces de uma mesma moeda. Marx, esse, avisava que "a violência é a parteira da história". Mas parece que já passou de moda o pensamento dialético...
Diplomata e escritor