O inimigo americano
Os franceses estão furiosos e ofendidos, os britânicos do Brexit acham que a Global Britain se impôs e que regressaram ao palco central da geopolítica, os americanos mostraram à China que a transição para o Indo-Pacífico é consequente e tem um adversário claro, e os australianos sentem-se mais protegidos.
A criação da AUKUS, uma espécie de aliança militar entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, que inclui a compra de oito submarinos nucleares americanos em vez de 12 submarinos convencionais franceses, foi vista de maneiras muito diferentes nas várias capitais. "Estupor", "humilhação", "comportamentos inaceitáveis entre aliados", "punhalada nas costas", diz-se em Paris. Os embaixadores franceses em Camberra e Washington foram chamados para consultas à capital. A embaixadora no Reino Unido não foi, porque já "conhecemos bem o oportunismo inglês". Nos Estados Unidos, fala-se do significado na construção de uma estratégia para o Pacífico e desvaloriza-se a ira de França, o "mais velho aliado" americano (onde é que já ouvimos isto?).
A NATO tinha-se expandido após a queda do Muro de Berlim e foi crucial na legitimiação da resposta ao ataque terrorista, mas foi sendo cada vez menos central para os americanos (gastem o que devem, disseram Obama e Trump, ainda que de modos diferentes). As ameaças agora são outras. Os americanos têm mais com que se preocupar, a Europa e o que está à sua volta é um problema dos europeus.
Macron tem uma ideia clara sobre o lugar da Europa no mundo. É um projecto tão político quanto industrial ou militar. O portfólio do Comissário Bretton (mercado interno, indústria, digital e defesa) é - já disse tantas vezes - o melhor indicador de como o presidente francês pensa que deve ser a autonomia estratégica. E é por isso que o que aconteceu a semana passada lhe é tão grave. Além dos milhões perdidos, é um golpe na opção de investimento em tecnologia de ponta e na indústria militar de exportação. E na grandeza global da França. Os americanos nem sequer consideraram a presença francesa no indo-pacífico, onde tem 1,5 milhões de cidadãos e oito mil soldados, relevante.
Depois do Afeganistão e dos submarinos, na Europa, os que defendem uma autonomia estratégica que signifique interesses próprios divergentes dos americanos, nomeadamente na relação com a China, pensamento autónomo e capacidade militar comum - no fundo, transformar a União Europeia numa potência - dizem que a sua razão está provada (caso em que se pergunta, se os interesses são diferentes, será assim tão estranho terem sido encostados por americanos e australianos? E como vêem a China, então?). E falam de decisões de política externa e defesa por maioria, como se o problema fosse esse e não a indefinição do interesse europeu por manifesta existência de muitos e diferentes. Os mais cautelosos, quando falam de autonomia estratégica querem dizer sobretudo maior responsabilização pelo seu próprio destino, mas de mãos tão dadas com os americanos quanto possível. E há os que estão sinceramente preocupados ao ver os americanos de partida sem que a protecção dos outros europeus lhes inspire confiança.
O verdadeiro problema geopolítica da Europa é saber o que quer e pode ser. Isso não se vota por maioria, nem se define por oposição aos aliados tradicionais, mas Macron vai presidir à UE quando os britânicos não estão e Merkel sai de cena. De Gaulle, que chegou a sair do comando militar integrado da NATO e disse que "para a Inglaterra (...) não há aliança que permaneça, tratado que valha, nem verdade que conte", ressuscita nos artigos de opinião numa França que celebra orgulhosa o bicentenário da morte de Napoleão.
Consultor em assuntos europeus