O grande viés cognitivo do nosso tempo
Hoje celebra-se o Dia Mundial do Cérebro, uma efeméride assinalada desde 2014, por iniciativa da World Federation of Neurology (WFN), com o objetivo de alertar para as grandes questões relacionadas com este órgão. Apesar da sua importância e dos enormes avanços da tecnologia e da ciência nas últimas décadas, o cérebro continua a ser um órgão misterioso e largamente inexplorado.
Um dos aspetos mais fascinantes do cérebro é a sua capacidade extraordinária para processar e interpretar a informação que recebemos através dos nossos sentidos. Porém, por vezes, comete erros. Exemplos dessas falhas incluem a criação de falsas memórias e, sobretudo, os chamados vieses cognitivos - tendências sistemáticas de pensamento que nos levam a fazer julgamentos imprecisos ou distorcidos. De forma muito resumida, o cérebro recorre a atalhos mentais para processar a informação mais depressa, mas isto tem um custo: por vezes, leva-nos a conclusões erradas ou enviesadas. Cometemos erros de julgamento, influenciados por experiências passadas, crenças e expectativas.
Existem, entre outros, três tipos de viés cognitivo muito frequentes: o viés de confirmação, que nos faz procurar, interpretar e recordar informações de forma seletiva, de modo a confirmarem as nossas crenças. O viés de ancoragem, que nos leva a confiar em excesso na primeira informação que recebemos sobre algo ao tomar decisões. E, por fim, o efeito de “manada”, onde os indivíduos tendem a adotar comportamentos, crenças ou decisões com base naquilo que a maioria faz, ainda que isso contrarie a sua própria avaliação - é a tendência de seguir a multidão, ou de ser “maria vai com as outras”, em bom português.
Compreender esses atalhos mentais é crucial, pois ninguém está imune aos seus efeitos. Uma ilustração contundente de como os vieses cognitivos se manifestam na nossa sociedade pode ser observada na discussão pública sobre a presença de imigrantes e de outros grupos minoritários em Portugal. Muitos portugueses estão legitimamente revoltados com o facto de, 50 anos depois do 25 de Abril, continuarmos atrasados em relação ao resto da Europa em vários domínios. Para muitos, o Estado e os sucessivos governantes falharam. E para uma parte substancial, mas não maioritária, dos portugueses, os imigrantes e os grupos que não se inserem num certo ideal de perfeição cívica - como os ciganos, os nómadas e os moradores de bairros de barracas - são vistos como parte do problema, se não mesmo como os seus causadores, servindo de bodes expiatórios para tudo e mais alguma coisa, desde a perceção de insegurança à subida dos preços das casas.
Para muitos, pode ser mais fácil responsabilizar o morador do bairro do Talude que ali construiu a sua barraca de forma ilegal, do que preocupar-se com as razões que levam alguém a viver naquelas condições miseráveis e, sobretudo, com a falta de políticas eficazes na área da habitação. Essa mesma perspetiva, por vezes, não se recorda dos 12 mil milhões de euros que os contribuintes injetaram para pagar os prejuízos do BES e do BPN, nem reflete sobre os 3,2 mil milhões de euros que voaram para a TAP. Quantas habitações se poderiam construir em Loures e em outros concelhos da Grande Lisboa com os 12 mil milhões de euros que foram perdidos nestes dois bancos? Quantos problemas sociais poderiam ser resolvidos com os 3,2 mil milhões de euros que vão ser, em grande parte, perdidos na TAP? Quantos hospitais, centros de saúde, escolas, creches, esquadras de polícia e postos da GNR poderiam ser construídos com esse dinheiro?
A dimensão do que está em causa pode transcender a compreensão imediata, porque são números estratosféricos, mas a preocupação foca-se no vizinho que vive da “malandragem”, recebe o rendimento de inserção e circula num automóvel de alta cilindrada. Da mesma forma, torna-se fácil ver o imigrante ilegal, que não paga impostos nem desconta para a segurança social e compete pelos trabalhos menos qualificados. No entanto, é mais difícil compreender até que ponto são perniciosas para o país a grande corrupção, a má gestão, os compadrios entre público e privado e a fraca governação no Estado e nas empresas.
Esquece-se, por vezes, que um só banqueiro desonesto pode custar muito mais ao país do que todas as pessoas que recebem o rendimento mínimo (cerca de 350 milhões de euros por ano). Infelizmente, o viés cognitivo em “manada”, que alimenta o crescente justicialismo e uma visível insensibilidade para com os elementos mais frágeis da nossa sociedade, é o mesmo que leva muitos a ignorar os problemas que realmente impedem o país de crescer e de se desenvolver.
Para superar este ciclo, é fundamental promover a reflexão crítica e a informação factual, permitindo-nos olhar para além dos atalhos mentais e enfrentar os desafios complexos com maior clareza e justiça.
Diretor do Diário de Notícias