O Grande Normalizador
Parece que o advogado perguntou às juízas se podia fazer declarações à saída do tribunal – há jornalistas lá fora, disse ele. A juíza relembrou-o que estamos num país livre. O advogado, fiel ao instinto de obediência, retorquiu que só queria saber se o tribunal não consideraria falar aos jornalistas como falta de educação. Enfim, um mal-entendido. Talvez um certo excesso de zelo, nada importante. Já fora do tribunal, o bravo advogado afirma aos jornalistas que “este processo não é de Marte. É tudo normal. A normalidade é uma palavra que deve ser associada a este processo”. O advogado foi ali para normalizar. O advogado é o Grande Normalizador.
O processo começou com a vigarice da escolha do juiz do inquérito – mas isso é normal. A transmissão da detenção em direto do aeroporto foi normal. O despacho do juiz do inquérito onde se lê que a medida de prisão preventiva “a pecar não será por excesso”, foi igualmente normal. Onze meses de prisão sem acusação é normal. Como normal é que a acusação seja apresentada três anos depois da prisão. Tudo normal.
Sete anos de campanha difamatória nos jornais e nas televisões também é normal. Violar o segredo de justiça é normal. A declaração do inspetor que afirma que determinada notícia só poderá ter tido origem nele “próprio como coordenador da investigação, no titular do inquérito do MP ou no JIC do TCIC” é totalmente normal. As autoridades confessam os próprios crimes: ou fui eu, ou foi o procurador, ou foi o juiz. Normalíssimo. O Ministério Público não abre inquérito. Normal.
Sete anos depois o tribunal de instrução decide que nada está indiciado e que nenhuma das acusações tem mérito para subir a julgamento. Tudo normal, diria o advogado. Sete anos de insultos nas televisões não é nada de extraordinário. Não estamos em Marte. No momento em que absolve, o juiz cria uma nova acusação. Também é normal. Quem não achou normal foi o Tribunal da Relação que a considerou ilegítima e ilegal porque resultante de uma “alteração substancial de factos”. Mas, enfim, é tudo normal. Como normal é que ao fim de sete anos a ação administrativa contra o Estado por ausência de justiça em tempo razoável não tenha tido nenhum desenvolvimento. Nem uma única sessão de julgamento. É normal. Como é sabido, o que é normal é que as manobras dilatórias sejam cometidas por advogados, nunca pelo Estado.
Dez anos depois da prisão, o recurso do ministério público foi julgado em Lisboa por duas juízas transferidas para outros tribunais, uma para o Porto e outra para Guimarães – outro facto normal. Como normal é, também, que as duas juízas tenham identificado um “lapso de escrita”, mudado a acusação, mudado o crime e mudado a moldura penal – tudo normal. É proibido? É. É normal? Com certeza. Afinal, não estamos em Marte. O advogado foi, ele próprio, testemunha que em três anos de instrução nunca o Ministério Público falou naquele “lapso de escrita” – mas é tudo normal. A manigância do “lapso de escrita” é a consagração da normalidade, a normalização da desonestidade, por assim dizer. Afinal, devemos reconhecer que nada disto é novo neste planeta - não estamos em Marte. E pronto, terminemos. O Conselho Superior da Magistratura criou um “grupo de trabalho” para tutelar administrativamente o processo judicial e ninguém vê nisso nada de anormal. A decisão instrutória de 2021 ainda é efetiva, o acórdão de janeiro de 2024 não transitou em julgado, mas ainda assim marquemos o julgamento sem acusação (derrubada em 2021) nem pronúncia (derrubada em 2024). Não estamos em Marte. Hoje é sábado, amanhã é domingo. Tudo normal.
Post Scriptum – o “grupo dos cinquenta” foi reunir com o senhor procurador-geral que, tendo atingido o limite de idade previsto na lei, continua em funções. A defesa do estado de direito faz-se assim, como antigamente, legitimando os homens à custa da lei. Dizem que a reunião correu bem. Óptimo. Tudo normal.
Antigo primeiro-ministro e arguido na Operação Marquês