O grande chefe

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No momento em que escrevo, o presidente norte-americano determina o envio de mais elementos da Guarda Nacional e fuzileiros para a Califórnia para controlar sob tutela federal os protestos nas ruas. Ao mesmo tempo, ameaça o governador daquele estado com a possibilidade da sua prisão, quando aquele decide questionar em tribunal a legalidade da intervenção militar de Trump em Los Angeles. A presença dos militares federais na Califórnia, contra a decisão das autoridades locais e ao abrigo de legislação que apenas o permite perante uma “ameaça ao Estado federal”, terá levado ao aumento da tensão e dos confrontos. Aos protestos contra as regras sobre imigração e a detenção de trabalhadores ilegais, junta-se a contestação ao “autoritarismo” e à “violação da soberania do estado” federado cujo rosto é também Trump. E aumenta a crítica ao seu aproveitamento político-mediático que retirou das notícias a perigosa birra entre o presidente mais poderoso do Mundo e o milionário mais excêntrico do mundo, substituindo-a por imagens de fardas sob as ordens de Trump a conter o aparente caos nas ruas, algo bastante mais vendável, consente-se.

Este poderia ser o ponto de partida de mais um filme-catástrofe de um estúdio de Hollywood. O seu guião é suficientemente familiar. E, antevê-se, a história irá evoluir para um bitter sweet end, com um injustiçado pelo sistema a desempenhar uma qualquer façanha moral que o redima ao mesmo tempo que a força e a ordem prevalecem, têm de prevalecer. Ao amanhecer, num amanhecer, enquanto o fumo ainda interrompe os primeiros raios de sol, as pessoas retomarão as suas vidas, irão levar crianças louras à escola, beberão um primeiro café no estabelecimento que o dono esforçadamente reabre, acabando de varrer os vidros. Entra a música final, enquanto os veículos militares, em fila na autoestrada ainda deserta, se dirigem para fora da cidade, numa procissão de pó e dever cumprido. The end.

Para a generalidade dos espectadores da trama, dos cidadãos que elegeram Trump, não há de facto qualquer dúvida sobre a justiça e a bondade das decisões em causa. A ordem tem que prevalecer. O poder não deve ser questionado nas ruas. As leis são detalhes prontos a serem alterados. A democracia no que tem de ponderação, consensualidade e debate é aborrecida. Incompreensível, lenta, ineficaz. Deve ser substituída por força e simplicidade de objetivos e de palavras. Dilemas morais ficam para as óperas - mesmo que as soap.

A força não precisa normalmente do direito, a partir de um momento inicial. As leis e os tribunais tornam-se empecilhos também à emocionalidade protoépica do poder e dos ditadores. O desafio argumentativo mais sério dos novos autoritarismos no espaço ocidental é o de justificar de forma razoável o fim da separação de poderes da ordem liberal dos últimos séculos. Têm-no feito com grande eficácia e apelando também à história: os grandes povos sempre tiveram grandes chefes. Mesmo que isso possa não significar nada - a categoria da “grandeza” está por apurar ainda - ou nem sequer ser verdade, é um bordão atrativo e poderoso, na sua aparência de lógica imediata e indestrutível. A natureza do poder deixa de conter a sua autolimitação, a sua temporalidade, o seu controlo. A natureza do poder é, apenas, poder. E o poder pode.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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