O Governo 4.0 e os riscos para o futuro da democracia e do ser humano

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O modelo, a que nesta crónica chamamos Governo 4.0, inspirado nas ideias de Curtis Yarvin e Peter Thiel, propõe-se abandonar os princípios democráticos tradicionais, para adotar uma nova abordagem fria, calculista e monocrática da governação e dos poderes públicos.

Esqueçam os debates parlamentares, as eleições ou as deliberações públicas, pois a Inteligência Artificial (IA) decide por nós, sempre em nome da eficiência e da redução de custos. A democracia parece ser demasiado lenta para acompanhar o progresso tecnológico e económico. A solução passa por substituir decisores humanos por um algoritmo capaz de gerir cada aspeto da governação, com base em dados e previsões matemáticas.

Decisões que antes passavam por estudos ou discussões políticas são tomadas em segundos, baseadas em indicadores económicos e perfis sociais rigorosamente analisados. Neste caso, o cidadão é reduzido a métricas, como produtividade, potencial de consumo e rentabilidade. Quem não é considerado “eficiente” é dispensado.

Parece um cenário futurista, mas a Administração Trump trouxe consigo esta distopia. A pretexto de modernizar a máquina pública, o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) de Elon Musk começou já a substituir funcionários por sistemas de IA privados, enquanto algumas bases de dados do governo são migradas para as mãos de uma elite tecnológica.

O resultado é um Estado onde a eficiência esmaga a responsabilidade democrática. Os serviços públicos são transformados em plataformas privadas que apenas atendem quem demonstra ser um “bom investimento”. No Sistema de Saúde, os doentes mais idosos ou com condições dispendiosas são simplesmente ignorados. A Educação deixa de ser um direito universal e passa a priorizar apenas os alunos com melhor “prognóstico produtivo”.

A política é considerada “ineficaz”, a democracia é substituída por um processo onde o algoritmo seleciona os governantes com base em competências técnicas e capacidade de impulsionar o crescimento económico. A responsabilidade política desaparece, pois um algoritmo não responde a críticas nem se sensibiliza com argumentos humanos.

Peter Thiel, um dos principais ideólogos deste modelo, sempre defendeu que “liberdade e democracia são incompatíveis”. No Governo 4.0, a liberdade torna-se um privilégio reservado aos mais ricos, que pagam para influenciar o sistema, enquanto a maioria vive sob uma rígida estrutura de vigilância e controlo. As reclamações são tratadas como “tentativas de sabotagem”, punidas com uma redução no “score social”, que determina o acesso a serviços básicos.

Mais inquietante é a forma como este modelo se apresenta como imparcial e justo. Os defensores do Governo 4.0 alegam que o algoritmo elimina erros humanos e decisões emocionais, mas a realidade é que a IA apenas reflete os preconceitos e interesses de quem a programou. Ao substituir a política por uma estrutura algorítmica gerida por uma elite tecnológica, o poder deixa de estar nas mãos do povo e passa a servir exclusivamente quem tem recursos para manipular a máquina.

Este futuro, que parecia uma distopia distante, está a tomar forma. Sob o pretexto de “eficiência”, a sociedade arrisca-se a abdicar do que tem de mais valioso, que é a capacidade de decidir o seu próprio destino. No dia em que aceitarmos que um algoritmo pode governar melhor do que nós próprios, a liberdade deixará de ser um direito e passará a ser apenas uma linha de código, prontamente apagada se for considerada “ineficiente”.

Esperemos que este modelo do Governo 4.0 não se espalhe pelo mundo com entusiasmo desmedido, pois, se o objetivo é apenas maximizar a eficiência e reduzir custos, basta contar com a previsibilidade das máquinas, dispensando as incertezas e as hesitações dos gestores e governantes humanos.

Especialista em governação eletrónica

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