O futuro da RTP - Que tal discutir a sério antes de tomar qualquer decisão sobre o assunto?
A RTP é a empresa de comunicação social mais relevante do país.
É uma empresa de capitais totalmente públicos, mas mais do que uma empresa do Estado, é nossa, é dos cidadãos.
O seu orçamento é quase integralmente suportado pelo pagamento de uma taxa, uma contribuição audiovisual (CAV), que pagamos na factura da electricidade, por ser uma forma razoavelmente universal de colecta.
Actualmente, o valor é 2.85€ (mais IVA) por mês. Os agregados economicamente mais desfavorecidos pagam 1€.
É uma relação directa e estável dos cidadãos com a sua empresa de serviços media. Não depende de flutuações do Orçamento de Estado.
Há quem diga que a RTP custa muito dinheiro. Não é verdade. Comparada com as outras televisões públicas da Europa, a RTP custa 4 vezes menos que a média europeia. Está claramente na cauda dos países europeus em termos de financiamento e isso tem muitas implicações negativas no cumprimento das missões que lhe são atribuídas e na qualidade do serviço que é prestado.
Para além do valor da CAV, a RTP tem receitas comerciais, entre elas o valor da publicidade, cerca de 20 milhões por ano, praticamente toda concentrada na RTP1, que o Governo agora anunciou querer retirar em 3 anos (não sabemos a posição em relação à publicidade nos outros canais e no digital).
Esta é uma possibilidade que tem sido apresentada em discussões ao longo dos anos e não deve de maneira nenhuma ser considerada um tabu.
Outras estações de serviço público europeu também não têm publicidade, desde logo a BBC, ou a TVE, que deixou de a ter há relativamente pouco tempo.
O problema é a medida ser agora apresentada como decisão consumada, sem uma discussão prévia e sem um enquadramento estratégico. Mais grave ainda: sem uma compensação financeira que compense a imediata perda de receita.
Qual é o racional por detrás da medida? Podemos pensar que ela se destina a compensar os privados, que se queixam de concorrência desleal pelo facto da RTP ter financiamento estatal e publicidade. Mas nesse caso quais são as contrapartidas de serviço público exigidas aos privados? Se pensarmos nos dois principais canais SIC e TVI, o seu horário nobre é preenchido na sua quase totalidade com telenovelas e reality shows. Seria para suportar que conteúdos exactamente que a RTP1 abdicaria da publicidade?
Da última vez que foram retirados 6 minutos de publicidade à RTP (Morais Sarmento, Governo de Durão Barroso) também foram prometidos programas culturais nos privados. Alguém os viu?
Mas a questão hoje, 20 anos depois, é que está por provar que se a RTP abdicar dos seus 6 minutos de publicidade os canais nacionais privados ganhem directamente com isso.
Não há uma transferência directa de publicidade. O mais certo é que essa publicidade se disperse, essencialmente pelos meios digitais, e no digital quem fica com a maior parte são as plataformas internacionais.
O que haverá, isso sim, é uma transferência de público para os privados, um público mais velho e mais C/D que, sem os habituais programas da RTP1, procurará outros programas na concorrência (curiosamente, o canal que mais poderá beneficiar com isso será o CMTV, não é à toa que o jornal e as publicações desse grupo se têm dedicado há anos diariamente a denegrir a RTP).
O ministro da tutela defende que a decisão de tirar a publicidade - sem nenhuma compensação financeira - é uma forma da programação da RTP se concentrar menos nos ganhos comerciais e mais na qualidade.
É partir de um pressuposto de que os programas comerciais não são programas de qualidade ou vice-versa. O que é, no mínimo, discutível.
Mas mais do que tudo, a decisão é tomada sem ser enquadrada por um novo contrato de concessão. Ou seja, em vez de apresentar um contrato de concessão onde a decisão de acabar com a publicidade é enquadrada numa estratégia, apresenta-se avulsa a medida do corte de publicidade e depois altera-se o contrato de concessão para o adequar à medida.
Que consequências podemos antecipar?
Uma RTP sem publicidade dificilmente terá programas de grande audiência. Jogos de futebol da Selecção Nacional, desde logo. Será praticamente impossível que uma RTP sem publicidade compre os direitos de transmissão. Para além de serem muito caros, não poderão ter qualquer retorno financeiro.
Ou programas, como por exemplo, o emblemático O Preço Certo, que antecede o Telejornal e para este canaliza a sua audiência. Será um desperdício de dinheiro tê-lo em antena sem o rentabilizar comercialmente com a muita publicidade que atrai.
Se nos focarmos no essencial, esta medida é um acelerador de uma opção a tomar num cenário que há muito se vinha a desenhar em relação ao futuro da RTP.
Ou seja, de maneira genérica, aquilo de que estamos a falar é de escolher entre dois modelos:
Uma RTP com publicidade na RTP1 e programas para grandes audiências, procurando contactar de forma generalista com todos os públicos.
Uma RTP sem publicidade na RTP1, nem financiamento ou indeminização compensatória e consequentemente com menos capacidade financeira para grandes produções ou operações de grande cobertura noticiosa, desportiva ou de outros eventos.
Neste caso seria um erro trágico continuar a investir o então mais escasso orçamento em conteúdos feitos em função da procura de maiores audiências. Isso seria a receita para o desastre de não só não se perceber a diferença face aos canais privados, como de arriscar fazer, dentro do género, muito pior que eles.
A opção lógica seria concentrar o orçamento em produção alternativa à lógica comercial, nomeadamente apostando e, eventualmente aumentando, as obrigações de investimento em cinema, séries, documentários e animação.
Essa seria uma RTP complementar à oferta dos privados, com públicos mais segmentados, menos generalista, e com menos audiência, desde logo na RTP1. Um serviço público provavelmente mais evidente, mas com muito menos público. Seria provável que muitos portugueses deixassem de frequentar os canais da RTP.
Qualquer um destes dois modelos pode fazer sentido, desde que seja sustentado por uma estratégia clara e articulada.
Mas a segunda opção é, sem dúvida, uma grande mudança estrutural na RTP, que não deve ser decidida por decreto, sem uma discussão e um contrato de concessão que a determine.
Gosto de pensar nas políticas para o audiovisual e para os media como uma parte das políticas urbanísticas. Tal como as praças públicas e os cafés, as ágoras dos espaços urbanos, os órgãos de comunicação social devem ser locais de encontro dos cidadãos.
A RTP, com o seu conjunto de canais e plataformas de rádio e televisão, deve organizar-se como um conjunto de bairros, com as suas ruas, ruelas, becos e praças públicas mediáticas.
Nessa analogia, no modelo ainda vigente, a RTP1, generalista, seria a praça central onde se cruzam todos, mais novos e mais velhos, mais favorecidos e menos favorecidos, todas as minorias passando e encontrando-se numa estação que é de todos.
Tem sido essa a função dos canais generalistas, praças centrais, que hoje estão, contudo, cada vez menos centrais e generalistas, ignorados pelos jovens que cada vez os frequentam menos, abandonados pelos que cada vez vêm menos televisão - um pouco por todos, excepto, sobretudo, pelos mais velhos e os mais pobres.
Como revitalizar essa cidade de conteúdos que é a RTP e torná-la atractiva para todos?
O ainda vigente contrato de concessão foi pensado há quase 10 anos (2015) num modelo que tinha em conta a centralidade esmagadora (desde logo pela distribuição do orçamento pelos canais) quer da RTP1 sobre os outros canais de televisão, quer o domínio esmagador da televisão sobre a rádio, quer a secundarização do digital face à rádio e à televisão.
O modelo que ficou estabelecido no contrato de concessão que o Ministério da Cultura do Governo de que fiz parte, depois de discutido e consensualizado com todas as entidades e associações, deixou pronto a assinar (2022), e que o Livro Branco posteriormente (2023) veio confirmar, apontava já para um futuro dominado pelo digital, mas sem prescindir da lógica de organização dos canais actuais.
Agora, perante esta medida totalmente desestabilizadora da situação da RTP e potencialmente muito perigosa para o cumprimento das suas missões de Serviço Público de Media, proponho que aproveitemos a oportunidade da discussão de fundo para falarmos do essencial de forma aberta e sem ideias feitas.
No fundamental, uma política pública para os Média deve ter como desígnio a qualidade, a universalidade e a diversidade dos seus serviços, programas e conteúdos, de informação, ficção e entretenimento.
O cumprimento das funções que decorrem desse compromisso encontra, pela dimensão e pela História do nosso país, o seu modelo mais adequado na existência de uma estação de capitais públicos de serviços media, com obrigações de investimento no cinema e audiovisual, articuladas com outras políticas públicas de apoio à cultura, às artes e aos média.
A RTP é essa empresa e a sua existência é hoje absolutamente decisiva para a defesa da pluralidade, da independência, da liberdade e da democracia.
Sobre um chão comum de democracia, liberdade, pluralismo, tolerância e demanda pela verdade, uma sociedade é tanto mais rica quanto mais opiniões, discursos, narrativas, visões e ficções possibilite existirem nas suas redes sociais e de comunicação.
A privatização da RTP seria um erro de consequências muitíssimo nefastas. Nem aproximadamente os privados conseguiriam garantir o serviço público de media com toda a diversidade que uma estação pública totalmente focada nessa missão e sem o objectivo de ter lucro comercial garante.
Mesmo que, por hipótese, tais missões fossem total e integralmente consignadas, o seu custo seria muitíssimo mais elevado, desde logo pela necessidade de acrescentar margens de lucro aos serviços.
Mas, sobretudo, a perda da instituição RTP, do seu histórico, da sua identidade e da sua projecção e ligação à comunidade portuguesa, seria irreparável.
O que fazer então? Retomo a proposta que sempre defendi, antes de ter tido e no tempo em que tive responsabilidades na RTP e no Governo (não a consegui concretizar no tempo em que fui governante, por um conjunto de razões que não cabe aqui enumerar, mas nunca deixei de a defender nessa altura dentro e fora do Governo).
Faço essa proposta agora - com um novo foco e numa nova perspectiva, que o tempo que passou, os desenvolvimentos tecnológicos e as circunstâncias sociais e políticas actuais determinam - ainda com mais convicção e sentido de urgência.
Este é um momento desafiador para as televisões europeias. O desenho do futuro vai-se fazer da competição e complementaridade entre os canais de fluxo (generalistas e temáticos) e as plataformas de streaming (desde logo na organização e estratégia interna de cada estação ou marca).
O fundamental passa, como sempre passou, pela criação de conteúdos originais, pela produção local com ambição internacional, mas hoje, mais que nunca, por um design estratégico de organização, disponibilização, promoção e capacidade de potenciar os conteúdos gerando diferentes comunidades de espectadores no ciclo e na arquitectura das diversas janelas de exibição.
Penso que a perspectiva a ter em relação à RTP é a seguinte: os principais activos da RTP já não são os seus canais, mas as suas plataformas: RTP Arquivos e RTP Play.
A RTP Play deve ser o centro da nova estratégia da RTP. É nela que se deve concentrar, sem hesitação, a inovação: em tecnologia, design, customização, aplicações, conteúdos e pessoas.
O foco não deve mais ser colocado na RTP 1 e muito menos nas suas audiências. Isso será cada vez mais uma armadilha de avaliação. A RTP 1 perde e continuará a perder audiência em relação aos privados, e os canais generalistas privados continuarão a perder audiência para as novas formas de ver televisão e conteúdos vídeo.
A RTP não compete com os privados. A RTP deve distinguir-se da oferta privada.
A RTP distingue-se pelo conjunto dos seus canais de televisão e rádio: pela força das suas identidades e pela sua complementaridade. Mas deve distinguir-se sobretudo pela relevância da sua plataforma de disponibilização de conteúdos em linha: a RTP Play, onde já tem grande vantagem em relação a qualquer outra plataforma nacional, mas em relação à qual muito há para fazer.
Antes de mais, deve haver uma nova reconfiguração do orçamento dos canais. Ou melhor, deve ser pensada uma nova lógica orçamental não exclusivamente anexada aos canais e às suas grelhas.
Penso que não se deve prescindir da publicidade na RTP1, para a RTP poder continuar a rentabilizar os grandes eventos agregadores e para que a RTP1 continue a ser a grande praça por onde todos os portugueses passam para ver a Selecção Nacional, os Jogos Olimpícos, o Festival da Canção...
A RTP 2 é o canal da cultura, mas a cultura na RTP não pode ser resolvida como se fosse um nicho. A cultura não tem necessariamente de estar na 2: tem de estar em todo o lado na RTP.
A RTP 2 tem de ter o melhor da oferta independente nacional e internacional, alternativa ao mainstream – no cinema, nos documentários, nas séries - numa programação pensada como uma curadoria.
Para reforçar a sua identidade, a RTP2 tem de se libertar das obrigações que tem no papel e que a ocupam absurdamente (a sociedade civil, as confissões religiosas, o desporto amador...): que podem e devem passar para a oferta linear.
A programação infantil deve organizar-se num sítio no digital, com um orçamento próprio (podendo também ser programada no horário diurno da RTP Memória).
Absolutamente fundamental deve ser a qualidade e independência do jornalismo, a credibilidade, o investimento na investigação, a rejeição do sensacionalismo, a demarcação das agendas políticas e da das agências de comunicação, a recusa do jornalismo pé de microfone, o pluralismo das opiniões no comentário, bem como a obrigação de fazer alinhamentos em função do interesse jornalístico e não das audiências. Quer no seu canal de fluxo, a RTP 3, quer nos seus outros serviços noticiosos dos outros canais ou na plataforma digital.
Para isto é preciso investir em mais jornalistas e em melhores condições de trabalho.
Há muitas ideias feitas em relação à RTP. Uma delas é que a RTP tem pessoas a mais.
Não tem. Poderá ter pessoas a mais num ou noutro sector, sobretudo áreas que terão perdido importância. Mas tem seguramente pessoas a menos em áreas decisivas para o futuro imediato: o jornalismo, a criatividade, o digital, o design, a inovação...
Sobretudo é preciso acabar com o modo de contratação que impede a RTP de contratar os melhores, visto que o CA não tem autonomia para contratar sem autorização do Ministério das Finanças...
Ou acabar com situações absurdas como anunciar que se vai prescindir de 250 pessoas que com o tempo acabarão, por necessidade, por ir sendo substituídas, não por profissionais contratados de entre os melhores do mercado, mas por jovens a recibos verdes, que acabarão por integrar a empresa por imposição legal daqui a uns anos (como aconteceu recentemente com quase 250 entradas no quadro, depois das últimas saídas em massa, que obrigaram à contratação de recibos verdes para colmatar as faltas de pessoal)...
Os trabalhadores da RTP têm de ser dignificados. A RTP tem de se renovar geracionalmente, tem de abrir as portas a novas pessoas e novas ideias.
A RTP é nossa, de todos os portugueses, em Portugal e no estrangeiro.
A RTP é uma peça fundamental no audiovisual português. A RTP tem de investir mais dinheiro em filmes, séries e documentários de produção independente para que estes possam ter valores de produção compatíveis com os dos seus parceiros europeus e para que possam participar ao mesmo nível em co-produções internacionais.
Serviço público audiovisual não é investir em adaptações de formatos internacionais de entretenimento que nem sequer são negociados para ficarem no arquivo, é investir em originais, é criar património audiovisual para o futuro.
Se há vontade e coragem para mudar, então que se mude no sentido certo e se tenha a coragem de, não cortar, mas sim aumentar o orçamento da RTP. Os ganhos – não só culturais, mas também económicos - serão substanciais.
Julgo que para o reforço do financiamento poderão ser consideradas as seguintes possibilidades:
- O aumento de capital que é devido (e reconhecido pela Comissão Europeia) actualmente de cerca de 14 milhões, e que pode ser disponibilizado em investimento faseado na imprescindível e urgente renovação tecnológica da empresa.
- Uma análise à parte do dossier da TDT (que custa quase oito milhões por ano à RTP) para que possam ser consideradas alternativas ao modelo (há um estudo, que tivemos ocasião de encomendar em tempo útil), e formas de financiar a disponibilização dos canais da RTP que possam não vir, pelo menos exclusivamente, do orçamento da empresa.
- Uma Indemnização Compensatória que cubra os custos dos canais internacionais de Rádio e Televisão (África e Internacional).
- Incentivos económicos da área do Ministério da Economia para o sector audiovisual - que deve ser encarado como uma prioridade estratégica (tal como aqui ao lado em Espanha) - e que ao beneficiarem o sector privado e o desenvolvimento da indústria, trarão obviamente ganhos colaterais para o sector público.
Por fim, há que actualizar a CAV, desde logo acompanhando o valor da inflação como exige a lei e, para além disso, aumentar o valor da contribuição. Progressivamente, até chegar aos 50 cêntimos. Menos de um café por mês. Com isenção, como já acontece, para os mais desfavorecidos.
Os portugueses perceberão se lhes for dito e mostrado o que estão a pagar: a maior plataforma de conteúdos em Língua Portuguesa.
Podemos não ir todos os anos ao Museu de Arte Antiga ou aos Teatros Nacionais, mas aceitamos pagar impostos para que eles existam, podemos não seguir a temporada do São Carlos, ver os espectáculos da Companhia Nacional de Bailado ou frequentar a Biblioteca Nacional, mas aceitamos pagar impostos para que eles existam e quem quiser os possa visitar quando entender. O mesmo entendimento deve haver em relação à RTP, assim seja evidente a sua oferta de serviço público. Os portugueses aceitarão pagar uma oferta diferenciada, que doutra maneira não existiria. Não compreenderão terem de pagar para terem uma oferta igual à dos privados.
Para isto, haverá coragem política? Podemos, pelo menos, para já, antes de qualquer medida precipitada, discutir a sério e a fundo o tema?