O futuro da regulação: máquinas a conversar entre si?
A transformação digital da regulação, em instituições como o Banco de Portugal, a Anacom ou a ERSE, entre outras, deverá representar não só uma modernização de processos, mas também uma mudança estrutural que deverá incluir a relação dinâmica entre as empresas reguladas e os respetivos reguladores, reduzindo significativamente a necessidade de intervenção humana.
A comunicação direta entre sistemas, machine-to-machine (M2M), surge como um novo paradigma. Análises humanas e relatórios manuais seriam substituídos por sistemas das empresas reguladas, que passariam a comunicar diretamente com os sistemas dos respetivos reguladores, de forma automática, contínua e com a mínima intervenção humana. A regulação tornar-se-ia invisível, mas integrada nos próprios processos operacionais.
Para isso, as normas legais precisam de passar por uma nova lógica, mais clara, mais técnica e sem ambiguidades. A legislação tradicional, ambígua e aberta a interpretações diversas, não serve os propósitos da automatização. Os algoritmos só aplicam regras com fiabilidade se estas forem precisas, estruturadas e parametrizáveis. O processo legislativo deixaria de ser exclusivamente jurídico e tornar-se-ia também computacional. A codificação algorítmica das normas e a sua coerência interna passariam a ser essenciais.
As regras devem ser legíveis por máquinas, contudo auditáveis por humanos. A lógica algorítmica não pode comprometer a transparência, a justiça ou a legitimidade democrática. Sistemas automatizados que não possam ser escrutinados geram desconfiança e tornam-se caixas negras do poder.
A regulação M2M exige ainda infraestruturas tecnológicas partilhadas, protocolos normalizados e formatos interoperáveis. No entanto, essa padronização não pode estar nas mãos de interesses privados. Se as empresas reguladas controlarem as normas técnicas ou os canais de comunicação, o risco de captura regulatória cresce e deixa de ser escrutinado, passando a ocorrer discretamente no código e nos fluxos de dados.
A legislação deve prever a interpretação automática sem perder a acessibilidade aos cidadãos. Interoperabilidade, auditabilidade e atualização dinâmica das normas devem ser pensadas desde o início. Ainda assim, a supervisão independente, a transparência e a responsabilização pública continuam a ser indispensáveis.
Este novo modelo traria ganhos evidentes para o funcionamento de setores como o mercado financeiro, as telecomunicações ou a energia, com ganhos significativos de eficiência, deteção de riscos em tempo real e redução dos custos de conformidade. Mas o verdadeiro desafio não está apenas na tecnologia. Está na qualidade do processo legislativo, na integridade das instituições e na sua capacidade de resistir à instrumentalização.
No futuro, os reguladores atuarão com base em fluxos de dados vivos, abandonando relatórios estáticos. A aplicação da lei será feita por sistemas automáticos. Para que essa transformação seja eficaz e justa, será necessário legislar com o rigor de um algoritmo e a responsabilidade de uma democracia.
O futuro da regulação será inevitavelmente algorítmico. No entanto, para ser justo, deve assentar em normas compreensíveis por máquinas e escrutináveis por cidadãos, em instituições com competências digitais e independência reforçada e numa tecnologia ao serviço do interesse público, livre de capturas silenciosas.
O ponto mais vulnerável não será o software, mas sim o próprio processo legislativo e a composição dos reguladores. É nesse espaço que a regulação corre maior risco de se afastar silenciosamente do seu propósito de defender o interesse público e os direitos dos consumidores e não, como por vezes acontece, servir os interesses privados das empresas reguladas.
Especialista em governação eletrónica