O fundão do poço
"Escárnio!", clamou Carla Zambelli, deputada mais bolsonarista do que Bolsonaro, a propósito da aprovação do "fundão" pela Câmara dos Deputados em Brasília.
E, por uma vez na vida, estava certíssima.
Recuemos quatro anos: em 2018, ano das últimas eleições gerais, os partidos do Brasil receberam uma fortuna de, mais ou menos, 300 milhões de euros do fundo partidário, naco do orçamento que migra dos cofres públicos para as contas bancárias das formações políticas, para estas fazerem, à grande, as suas campanhas.
Em 2020, ano de municipais, o montante subiu para cerca de 320 milhões de euros.
E, numa votação realizada fora de horas na semana passada, os deputados resolveram aumentar novamente o valor a ser gasto no sufrágio de 2022 para perto de mil milhões de euros.
Um acréscimo de 185% face aos números, já de si gigantescos, de há dois anos. Apesar da pandemia, do desemprego, da fome.
O bacanal da propaganda política foi um dos pilares do esquema de corrupção investigado pela Lava-Jato em 2014: em troca de vitórias em concursos públicos, as construtoras financiavam as luxuosas campanhas dos políticos que as propiciavam.
Mas essas campanhas não são indispensáveis à democracia? Sim e não. Se aplicarmos dinheiro público em escolas e hospitais, à partida, teremos educação e saúde de mais qualidade; mas não é líquido que o investimento no marqueteiro mais premiado faça o eleitor votar no melhor candidato - talvez o faça votar no mais rico dos candidatos.
Mais: a internet ganhou preponderância na propaganda partidária desde 2018 - e ela, honra lhe seja feita, é mais barata do que as rádios, as TV, os comícios.
O gasto milionário com o "fundão" à conta do contribuinte é, pois, visto por todos os ângulos, "um escárnio", como disse a, por uma vez na vida certíssima, bolsonarista Carla Zambelli.
No dia seguinte àquele comentário, entretanto, a imprensa publicou a lista completa, deputado por deputado, da votação do orçamento, com o tal "fundão" incluído, para 2021.
E quem estava entre os 278 a favor? Sim, a indignada Zambelli. E Eduardo Bolsonaro. E restantes fanáticos. Com as faces ruborizadas, argumentaram, atabalhoados: "Votamos a favor do texto geral, não do 'fundão'."
O voto deles, assim como a falta de vergonha, não é em vão: o principal instigador do "fundão" é o vasto grupo de deputados clientelistas que troca o apoio ao presidente, seja ele quem for, por dinheiro, venha do "fundão" ou de outro lado qualquer. E Arthur Lira, um dos líderes desse grupo, é quem decide se abre processo de impeachment ou não, na qualidade de presidente da Câmara dos Deputados.
A bola, entretanto, está com Bolsonaro, que tem poder de veto sobre o "fundão".
Vai deixar cair o discurso, com o qual enganou os eleitores, de que cuida do dinheiro público? A sua base mais naïf já o começou a cobrar.
Ou vai enfrentar Lira e companhia, de quem depende a sua sobrevivência política? Só para assustar, o vice de Lira pediu para tirar os pedidos de impeachment da gaveta.
É coisa para o homem ficar à beira de um ataque de soluços e de uma obstrução intestinal.
A solução, não o soluço, no entanto, não é tão difícil: Bolsonaro deve reduzir o fundo para, digamos, uns 650 milhões de euros, ainda assim mais do dobro do valor de 2020, e dizer que poupou milhões no orçamento. E os bolsonaristas, assim como engoliram comprimidos de cloroquina e outras drogas inúteis, vão engolir mais uma vez.
Jornalista, correspondente em São Paulo