O fim do “escreva o que eu dito” nos tribunais do futuro

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A cena repete-se diariamente nos tribunais portugueses com o ritmo de uma audiência de julgamento a ser quebrada pela busca de um documento perdido no processo digital. Horas de gravações áudio são meticulosamente ouvidas para fundamentar uma alegação do advogado, uma sentença de um juiz, preparar um recurso ou elaborar um acórdão. Este modelo de justiça, jurassicamente assente em tarefas mecânicas morosas, consome nos dias de hoje, injustificadamente, o tempo de juízes e advogados.

Em contraste com esta realidade, imaginemos um sistema Citius evoluído e moderno em que durante um julgamento, cada palavra dita é instantaneamente gravada e transcrita em texto em tempo real. Ou, pelo menos, transcrita em minutos a gravação após a conclusão do depoimento. Em ambos os casos, identificando quem fala (juiz, advogado e depoente).

Não se pretende uma mera transcrição, mas que o texto e o áudio fiquem sincronizados. Existem hoje produtos de IA que fazem isto mesmo. Num sistema assim pensado, um juiz desembargador, ao analisar o processo em recurso, lê a transcrição e se duvida da transcrição ou se quer ouvir a entoação de uma testemunha, com um simples clique sobre a frase, ouve de imediato o som original. O moroso trabalho de pause-and-play para reapreciar a prova desaparece.

Para nós advogados, citar depoimentos nas alegações torna-se uma tarefa de minutos, não de horas infindáveis a ouvir ou ler transcrições. Vamos mais longe. Em pleno interrogatório, o juiz ou os advogados precisam de confrontar um depoente com um documento específico. Em vez de interromper o raciocínio para pedir ao funcionário judicial que navegue por pastas digitais, o juiz utiliza um comando de voz (“Citius, mostra-me o email de 15 de janeiro sobre a entrega do material”).

A IA processa o pedido, localiza o documento no processo e exibe-o nos monitores da sala. A dinâmica da audiência passa a ser outra, mais fluida, mais rápida e focada na busca da verdade e não na burocracia digital. E no momento crucial da decisão? A redação de uma sentença exige a revisão de depoimentos, documentos e peças processuais. Com um Citius “inteligente”, o juiz pode pesquisar semanticamente no processo: “Encontrar todas as menções à ‘assinatura do contrato’”.

A IA apresenta todos os trechos relevantes, seja da transcrição de depoimentos ou de documentos. O magistrado seleciona os que interessam e, com um clique, pode, inclusive, inseri-os diretamente no corpo da sentença, já devidamente referenciados.

O ganho de tempo e de rigor é imensurável. Em vez de uma sentença, no mesmo tempo, o juiz faz duas ou três. A implementação destas ferramentas tecnológicas não é uma miragem tecnológica futurista. É uma necessidade para responder ao anseio por uma justiça mais célere e é perfeitamente possível com a tecnologia hoje existente.

Os desafios - do custo à segurança de dados e à necessária formação dos profissionais - são reais. Mas, a adoção de tecnologias e IA na Justiça, liberta os juízes e os funcionários judiciais das amarras do “escreva o que eu dito”, potenciando o que a máquina jamais terá: a capacidade de julgar com ponderação, senso crítico e humanidade. A tecnologia e a IA ao serviço da Justiça permitirá que esta seja mais rápida numa sociedade hodierna em que o tempo que nos foge a todos.

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