O fim do dólar como moeda global?

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Em Portugal temos estado ocupados com a política da paróquia, que invariavelmente anda à volta da Spinumviva e de tentativas de vitimização (reparem como o Governo conseguiu aparentemente colocar o PS na defensiva, ao acusar os socialistas de acederem indevidamente a informação sobre os negócios da empresa da família do primeiro-ministro), mas lá fora o mundo continua a avançar e há temas que, pelo impacto que terão nas nossas vidas, não podemos ignorar.

Um desses temas é o futuro do dólar como moeda de reserva internacional. Nos últimos dias, na sequência da guerra comercial e da instabilidade na economia dos EUA, temos vindo a assistir a um fenómeno nunca antes visto. Pela primeira vez em pelo menos um século, a moeda norte-americana não está a ser o ativo refúgio que os investidores procuram sem pestanejar ao primeiro sinal de turbulência. O recente sell off nas bolsas serviu de tiro de partida para esta tendência: ao invés de procurarem a segurança das obrigações do tesouro americano, as chamadas treasuries, os investidores começaram a refugiar-se noutras paragens. O receio de uma possível interferência da Casa Branca na independência da Reserva Federal será um dos fatores que explicam este cenário inédito, juntamente com a imposição de tarifas comerciais ao resto do mundo e a hipótese de um falado “Acordo de Mar-A-Lago” que passaria pela conversão das treasuries em obrigações com maturidade a cem anos (ou seja, os Estados Unidos entrariam numa espécie de incumprimento). Há também quem fale numa possível saída dos EUA do Fundo Monetário Internacional.

A questão que se coloca é o que pretende realmente a administração norte-americana, porque Donald Trump tem dado sinais ambíguos em relação ao futuro do dólar. Por um lado, tem defendido a manutenção de um dólar forte, que continue a ser a principal moeda de reserva global e a mais utilizada na esmagadora maioria das transações internacionais, chegando ao ponto de ameaçar com sanções aqueles países que optarem por outras divisas. Por outro, porém, tem vindo a fazer tudo para desvalorizar o dólar, de maneira a tornar mais competitivas as exportações norte-americanas.

Sabemos que o presidente está rodeado de economistas e outros especialistas que defendem que os EUA não podem continuar a acumular défices gigantescos e uma dívida pública recorde. O défice externo explica-se em grande parte pelo facto de o resto do mundo precisar de ter ativos em dólares. A solução destes conselheiros passa por reduzir a despesa pública (incluindo nos gastos com a defesa) e por um dólar que deixe de ser a principal moeda internacional. A ideia é que, juntamente com a imposição de tarifas comerciais, isto permita reindustrializar o país e travar a ascensão da China. Não por acaso, Trump tem defendido o regresso a uma “era dourada” da economia americana, anterior a 1913, quando a principal fonte de receita do tesouro eram as tarifas alfandegárias e o dólar era uma moeda forte e credível, mas ainda não tinha substituído a libra como a principal divisa internacional.

Esta visão é contestada por numerosos economistas mainstream, que argumentam que os Estados Unidos são os principais beneficiários da economia globalizada que Trump está a tentar desmantelar e que o papel do dólar como moeda de reserva global retira importância aos défices das contas públicas e das balanças comercial e de pagamentos. Em 30 anos, a economia americana deu passos de gigante: nos anos 90, o produto interno bruto (PIB) per capita norte-americano era mais ou menos idêntico ao da Alemanha. Hoje, é o dobro. Estados outrora pobres, como a Virgínia Ocidental ou o Mississipi, têm agora PIB per capita superiores aos do Canadá e de grandes potências europeias. Onde Trump vê declínio industrial, outros, como Paul Krugman, veem uma inevitável transformação rumo às atividades de serviços e à produção de bens de maior valor acrescentado, com o dólar a estar no centro de uma economia globalizada onde os EUA continuam a ser o grande vencedor, apesar do crescimento da China, que não é conhecida propriamente pelo seu respeito pelas regras da concorrência.

Krugman e outros economistas recordam também que é graças ao facto de o dólar ser a principal moeda internacional que os EUA conseguem financiar-se a juros mais baixos e, quando ocorre uma crise, não têm necessidade de recorrer a políticas de austeridade como aquelas que foram implementadas em Portugal e na Grécia há uma década. Quando ocorre uma crise, a Reserva Federal (Fed) tem uma maior facilidade que outros bancos centrais para injetar dinheiro na economia para a ajudar a recuperar, porque, como referimos, o resto do mundo precisa - por vezes desesperadamente - de dólares. A Fed chega ao ponto de ter de agir como o banco central do mundo inteiro, intervindo em situações que não dizem diretamente respeito aos EUA.

Ao mesmo tempo, a hegemonia do dólar é um instrumento vital do ponto de vista geopolítico, permitindo aos EUA colocar sanções a países hostis e a grupos terroristas pelo mundo fora. Se o dólar for destronado - uma hipótese que até recentemente existia apenas em cenários hipotéticos defendidos pela Rússia e pela China - tudo isto deixará de ser possível. E o facto de Washington estar a redimensionar e a renegociar os seus compromissos de defesa com os aliados na Europa e na Ásia deverá contribuir ainda mais para acelerar o declínio do dólar e a sua eventual substituição por outras moedas.

No fim de contas, tudo somado, os dois caminhos têm vantagens e desvantagens para os EUA. A única certeza será o facto de Washington não poder optar por ambos. Terá de escolher se quer ter um dólar forte, que é usado como moeda internacional, ou se prefere uma moeda mais fraca, que potencie as suas exportações. Embora, em Washington, haja quem acredite que será possível um meio termo, isto é, uma desvalorização controlada do dólar, que não coloque em causa o seu papel internacional. Para tal, Trump teria de convencer os aliados a aceitarem um dólar mais fraco, em troca de os Estados Unidos manterem a proteção militar, um pouco à semelhança do "Plazza Acord" que a administração Reagan assinou em 1985 com os aliados europeus e com o Japão. Mas há quem argumente que isso não será possível, porque teria de obter o aval da União Europeia e da China, que terão mais a ganhar em recusar esse acordo.

Para a União Europeia, esta situação representa uma oportunidade, mas também um desafio. O euro é, de longe, a segunda moeda de reserva mais importante, representando 20% do total global, contra os 58% do dólar, sendo a única que tem verdadeiramente hipóteses de constituir uma alternativa. Se a União tiver de avançar com a emissão de eurobonds para financiar o investimento na Defesa, o potencial do euro como moeda de reserva global deverá aumentar de forma significativa, sobretudo se ao mesmo tempo o dólar continuar perder peso. A concretizar-se este cenário, entraremos verdadeiramente num mundo multipolar e nada voltará a ser como antes.

Este contexto teria vantagens para a Europa, mas também acarreta desafios, porque se o euro for excessivamente forte colocará em causa a competitividade das nossas exportações e, em particular, os interesses da Alemanha e de outros países que, na prática, têm a sorte de poder utilizar uma moeda mais fraca do que aquela que teriam se estivessem sozinhos. Não nos podemos esquecer que, desde o lançamento do euro, a Alemanha acumulou excedentes comerciais significativos em parte graças ao facto de ter uma moeda mais fraca do que teria se ainda utilizasse o marco.

Diretor do Diário de Notícias

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