O fascismo cultural é que manda no país?

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A operação policial no Martim Moniz foi chocante por, de repente, nos apercebermos de que vivemos, afinal, num país onde um qualquer inocente que vá na sua vidinha, se tiver o azar de estar no local errado à hora errada, pode ser incomodado por uma formação policial, de bastão e capacete, qual força de choque, e ser obrigado a ficar virado para a parede largos minutos, imóvel, a tentar adivinhar quando vão inspecionar o seu corpo, aos apalpões, de alto a baixo.

Entre ser vítima de uma humilhação pública por agentes do Estado, como a da passada quinta-feira, ou ser vítima de um carteirista miserável que nos rouba 40 euros, qual é o infortúnio preferível?...  Eis uma escolha difícil.

O azar de Luís Montenegro, da ministra da Administração Interna, das chefias da PSP, do Ministério Público e de todas as autoridades que inspiraram, patrocinaram ou mandaram fazer essa rusga foram as imagens tiradas por telemóvel, as malditas imagens que todos os meios de comunicação social e todas as redes sociais reproduziram.

As fotos e os vídeos dessa operação, que os seus promotores anunciaram e sobre a qual, depois, se vangloriaram, apesar dos resultados práticos terem sido paupérrimos, não documentam apenas um evidente abuso de poder. Mostram como em nome do combate à “perceção de insegurança” que tem justificado politicamente o reforço de ações deste quilate, se inculca na comunidade um conceito de “perceção de segurança” assente num autêntico “fascismo cultural”.

Para o “fascismo cultural” os imigrantes e os negros, o principal foco destas operações policiais, são bons para trabalhar por pouco dinheiro, mas não podem descansar e divertir-se nas mesmas ruas, nos mesmos centros comerciais, nos mesmos cinemas, nas mesmas praias dos que cá nasceram.
Para o “fascismo cultural”, os imigrantes, os negros, se não forem “ocidentais” (leia-se, “brancos”), podem trazer-nos comida a casa ou cavar valas num terreno agrícola, mas não podem ter uma religião não-cristã, ouvir música com escalas estranhas, falar uma língua esquisita, usar turbante, andar em grupo ou rir demasiado alto.

Para o “fascismo cultural” um estrangeiro, um imigrante, se não for turista é um presumível suspeito e, por isso, sempre que anda em grupos há “perceção de insegurança”. Solução? Polícia para cima deles!
Para o “fascismo cultural” o mundo só é maravilhoso se todos tivermos medo do Estado, dos seus meios de repressão e intimidação, porque, por um lado, “o respeitinho é muito bonito” e, por outro lado, só com medo é que se tem poder absoluto.

Para o “fascismo cultural” um Estado só merece esse nome se for um Estado policial, para os imigrantes primeiro, para todos os outros logo a seguir.

O que as imagens do Martim Moniz e da Mouraria mostraram é que o “fascismo cultural”, se continuar a progredir, não subjugará apenas imigrantes e pessoas racializadas - afinal, crimes há por todo o lado, independentemente da cor da pele, “raça”, credo político ou religião e, por isso, “perceções de insegurança” são sempre fáceis de arquitetar.

Para muitos “portugueses de gema” as imagens da rusga lembraram este facto: “Se isto continua, um dia posso ser eu a estar virado para a parede, mãos na caliça, pernas afastadas, à espera de ser revistado.”



PS: A todos os leitores do DN e à sua incrível redação desejo um grande Natal!

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