O fantasma do passado nazi no Martim Moniz

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Volta e meia o fantasma das imagens do passado nazi surgem no meu horizonte visual, não só por serem tenebrosas e horripilantes mas, sobretudo, porque podem ser repetidas em qualquer altura e em qualquer parte do mundo, desde que se criem condições indispensáveis para a sua concretização.

Nunca podemos esquecer que existem centenas de “Hitlers”, ou muito piores do que ele, por esses países fora, à espera de condições sociopolíticas apropriadas para se apresentarem como os grandes salvadores da pátria e regeneradores da sociedade, alegadamente manchada pela impureza daqueles que se distinguem fisicamente dos considerados autóctones, como se existisse alguma sociedade sem miscigenação, fruto das consequências das migrações das populações ao longo dos séculos e milénios do devir histórico.

Ver judeus a serem barbaramente agredidos, presos, torturados, enviados para campos de concentração para serem, pura e simplesmente, exterminados, só por serem judeus, ou porque se conseguiu convencer uma grande parte da população alemã de que eles eram os causadores de todos os seus males, são imagens aterradoras, que nos perseguem, e factos indesmentíveis que, de vez em quando, necessitam de ser recordados, principalmente, aos mais novos, para jamais serem esquecidos.

A excelente imagem fotográfica publicada no dia 19 de Dezembro de 2024, on line, pelo jornal Diário de Notícias, sobre “operação especial de origem criminal”, realizada nessa mesma manhã, com um forte dispositivo policial a encostar um número expressivo de cidadãos desarmados à parede, de origem, esmagadoramente, hindustânica, como se fossem criminosos, revistando-os de forma ostensiva, em Lisboa, em pleno Martim Moniz, coração do exemplo multicultural da expansão ultramarina portuguesa, merece ser premiada, não só porque nos alerta para a possibilidade de poder vir a ser repetida, como também por nos fazer lembrar que era assim que a Alemanha nazi posicionava os seus opositores, para em seguida os metralhar, sem dó nem piedade.

Custa-me aceitar que esta operação, com actuações humilhantes e vexatórias da dignidade humana, tenha sido feita com o objectivo de aumentar o sentimento de segurança, em locais tidos como de risco, se o próprio Senhor Presidente da República já por ali andou, sem receio de ser molestado, e

centenas de cidadãos portugueses e estrangeiros por ali circulam, diariamente, sem grande preocupação de serem assaltados ou roubados.

Não entendo também como é que essa aparatosa operação da PSP, na Mouraria, foi “muito importante” para criar “visibilidade e proximidade” no policiamento, e conseguiu aumentar a “tranquilidade dos cidadãos”, como quer o Senhor Primeiro-ministro, Dr. Luís Montenegro, pois garanto-lhe que teve o efeito precisamente contrário daquele que, porventura, pretendia.

O que lhe posso dizer, Senhor Primeiro-ministro é que eu, nascido em Goa, que, com muito orgulho, já era português muitíssimo antes de o senhor ter nascido, com esta operação desastrada, dirigida, propositadamente, contra determinada zona populacional, sinto-me mais inseguro e profundamente preocupado, por causa dos impactos e repercussões que pode ter e porque receio que se procurem novos bodes expiatórios para resolver os males que grassam no país.

No editorial do jornal Diário de Notícias, igualmente do dia 19 de Dezembro, intitulado “Das percepções de insegurança e da distorção da realidade”, Valentina Marcelino, referindo-se a alguém muito conhecido nessa matéria de ataques sistemáticos aos imigrantes, revela como se pode manipular uma sociedade, dividindo-a para reinar, fomentando o ódio, usando o medo para ganhar o poder, e atingindo, assim, fatalmente, a democracia.

Se o que conta são percepções e não a realidade concreta, então podemos livremente admitir que, o que percepcionamos no Martim Moniz, é tão só um banal ensaio para a realização de novos voos ainda mais ousados e arrojados no futuro.

Infelizmente esquecemo-nos, com muita facilidade, que é com esse tipo de operações policiais, como as que nos foi dado observar, com profunda indignação, que podemos desbaratar, num ápice, a bela imagem de Portugal, multicultural e multirracial, difundida pelo mundo inteiro, a viver em harmonia, paz e sossego, que tanto nos custou a criar.

*Historiador

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Originalmente publicado na Revista da Casa de Goa

Diário de Notícias
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