O extremismo nas Forças Armadas: dos EUA à Europa
Em 2019, três anos depois de se alistar no Exército norte-americano, o jovem militar Jarrett Smith começou a manifestar um conjunto de comportamentos perigosos: difundiu instruções nas redes sociais sobre como construir engenhos explosivos improvisados; planeou juntar-se a um grupo paramilitar de extrema-direita na Ucrânia; declarou ter intenção de matar membros da Antifa (movimento político antifascista); e revelou ter conhecimentos sobre carros-bomba e acerca da preparação de napalm, um produto inflamável especialmente conhecido pela sua utilização na guerra do Vietname. Em 2021, após o ataque no Capitólio a 6 de janeiro, o Departamento de Defesa dos EUA emitiu um memorando com diversas orientações para prevenir e combater o extremismo dentro das Forças Armadas.
Em um contexto internacional volátil e turbulento, marcado pelas guerras na Ucrânia e em Gaza, e no qual a Europa discute temas como a autonomia estratégica e a falta de efetivos, importa refletir, ainda que de forma introdutória, sobre uma problemática em crescimento: o extremismo com ligações à extrema-direita no seio das Forças Armadas. É importante notar que a extrema-direita não é um grupo homogéneo, existindo diferentes correntes, mas todas partilham de uma ideologia ultraconservadora, baseada na afirmação de ideais nazis, atitudes racistas, xenófobas e hostis contra as comunidades imigrantes. Qual é o risco desta ligação? O risco evidencia-se em duas principais formas.
Por um lado, o risco refere-se à possibilidade de os grupos extremistas tentarem recrutar pessoal militar para a perpetração de ações violentas. Os militares são encarados como ativos estratégicos porque detêm um conjunto de capacidades – tais como experiência e utilização com armas e explosivos – que podem constituir know-how relevante para as atividades destes grupos. Por exemplo, durante o ataque ao Capitólio, foram detidos centenas de indivíduos com comprovada experiência militar, verificando-se 1 em cada 10 com ligações às Forças Armadas norte-americanas (no ativo ou ex-militares).
Por outro lado, o risco baseia-se na possibilidade de os extremistas poderem “infiltrar-se” nas Forças Armadas e, neste sentido, praticar um conjunto de ações prejudiciais ou violentas dentro deste meio, nomeadamente: (1) violar códigos de conduta, através da difusão de material classificado, armamento, e prestação de apoio e treino a grupos de extrema-direita (como ilustra o caso supracitado); e (2) perpetrar crimes de ódio ou ações terroristas.
Por norma, a “infiltração” é acompanhada por um processo de radicalização lento e gradual, não se detetando à partida atitudes ou comportamentos extremistas que seriam despistados em testes psicotécnicos.
Estes riscos não são meras hipóteses teóricas. Há evidências concretas demonstradas por casos reais. Segundo fontes públicas fidedignas, incluindo a RAND (think tank norte-americano), a RUSI (Royal United Services Institute) e o ICCT (International Centre for Counter-Terrorism), conhecem-se casos relativos à extrema-direita no seio das Forças Armadas desde os EUA até à Europa.
A maioria dos casos detetados em países europeus – incluindo na Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França, Grécia, Itália, Países Baixos, Reino Unido, Suíça e Ucrânia (entre 2017 e 2021) – não constituem condutas sistemáticas, mas são um alerta importante, evidenciando-se desobediências à autoridade, utilização de símbolos fascistas e atos violentos. A nível global, os EUA e a Alemanha são os países mais afetados devido ao histórico que têm com grupos daquela matriz ideológica.
Este assunto não é uma novidade, mas está em crescimento. Nos EUA, entre 1990 e 2022 pelo menos 545 indivíduos com experiência militar cometeram crimes motivados pelo extremismo sobretudo ligado à extrema-direita. Entre 2010 e 2020, o número de condenados aumentou significativamente. Note-se que, já em 2006, o FBI alertava para a possível infiltração de membros supremacistas nas Forças Armadas.
Nesse ano, a Europol classificou a extrema-direita como um “problema sério, em crescimento em vários Estados-membros”. Desde 2006, têm-se registado vários casos que demonstram um aumento das atividades dos grupos de extrema-direita na Europa com ligação a estruturas militares. Em 2019, a polícia alemã apreendeu uma quantidade avultada de munições e explosivos pertencentes ao Nordkreuz, um grupo de extrema-direita criado no seio de uma rede virtual de militares e polícias simpatizantes desta ideologia. Em 2021, em Espanha, descobriram-se ligações de alguns elementos das Forças Armadas ao grupo neonazi Lo Nuestro. No mesmo ano, em Itália, um membro da polícia militarizada Carabinieri foi investigado pelo alegado envolvimento em atividades extremistas, incluindo a sua participação no Aryan Roman Order, um grupo neonazi que tinha planos para atacar uma base da NATO e que terá beneficiado da cooperação com grupos semelhantes em Portugal.
Esta problemática também se tem estendido a outras áreas profissionais, como é o caso das Forças e Serviços de Segurança (FSS). Em 2020, 30 membros da polícia alemã foram suspensos por terem partilhado conteúdo neonazi em plataformas digitais, nomeadamente fotografias de Hitler e imagens de refugiados dentro de câmaras de gás.
E Portugal, onde se enquadra nesta matéria? Em 2019, um militar da Marinha Portuguesa divulgou documentos classificados num blogue com ligações à extrema-direita designado “Movimento Armilar Lusitano (MAL)”. Em 2022, dois anos após a divulgação pública do caso pelo DN, a PJM entendeu tratar-se de um crime de “violação de segredo” e não um caso de infiltração da extrema-direita nas Forças Armadas, suspeita esta que tinha levado à instauração do processo. O caso foi arquivado.
Apesar deste caso, a questão sobre o extremismo em Portugal enquadra-se apenas no âmbito das FSS, existindo suspeitas, pelo menos desde 2015, sobre o possível envolvimento de membros da PSP em grupos skinhead. Não obstante, Portugal tem tomado um conjunto de iniciativas para combater este fenómeno. Por exemplo, em 2021 foi anunciado que o recrutamento de polícias passaria a incluir testes psicotécnicos, e lançado um Plano de Prevenção contra a discriminação nas FSS. Em 2024, foi realizada uma formação para membros da GNR e da PSP centrada no combate ao discurso de ódio.
Não será correto afirmar que as Forças Armadas a nível global têm um problema com o extremismo porque não há evidências sistemáticas generalizadas. No entanto, é importante reconhecer que existem vários agentes no ativo e ex-militares que têm demonstrado um empenhamento significativo neste tipo de atividades: os riscos da ligação e os exemplos referidos são indubitáveis, evidentes da gravidade e premência desta problemática. Debater este assunto é, assim, crucial não só pelas potenciais consequências nefastas, mas também para assegurar a proteção de todos.
Investigadora associada do IPRI-NOVA, com investigação dedicada ao terrorismo e contraterrorismo