O exemplo de Mário Mesquita é a melhor resposta

Há 50 anos, publicava-se um livro que era para ter sido outro e que acabou por ser o que foi, porque o seu autor não quis deixar de fazer o que sempre tinha feito: combater a ditadura. Foi o primeiro livro de Mário Mesquita, que o publicou como um grito político contra o Regime. Deu-lhe um título provocatório - Portugal Sem Salazar - que logo desconstruiu na primeira página: "Salazar continua vivo, presente no nosso quotidiano, na vida política portuguesa. Os mais fiéis nem sempre são os melhores discípulos e a fidelidade à memória do homem público não se confunde com a fidelidade à doutrina".

Naquele conturbado ano de 1973, de agitação e contestação social, de duros confrontos políticos e militares e de conspiração em marcha, em que já se previa o fim, embora sem se saber quando e como ocorreria, aquele pequeno livro revelou opiniões e mostrou argumentos. Denunciou e afrontou. Foi provocador e crítico nas perguntas que colocou e nas respostas que obteve e divulgou. Foi abrangente nos temas que cobriu - liberdade, socialismo, comunismo, fascismo, exílio político, guerra colonial, descolonização, Europa, África... - e ousado na forma como os tratou.

O livro foi publicado em outubro, mês das últimas eleições do Estado Novo. O seu autor, o jovem açoriano Mário Mesquita, tinha então 23 anos e era jornalista no velho República, onde, não raras vezes, via artigos seus, incómodos para o governo, cortados pela censura. Iniciara-se nas hostes oposicionistas ainda nos Açores, intensificando a sua atividade política quando rumou a Lisboa. Pertencia ao que Jorge Silva Melo descreveu como grupo dos "sábios que estavam a vir dos Açores", onde se incluíam também Jaime Gama, Eduardo Paz Ferreira ou Sacuntala de Miranda. Adere, pela mão de Gama, à Acção Socialista Portuguesa (em 1969), vive a dupla condição de militante e jornalista no já referido República e é um dos fundadores do Partido Socialista (em 1973), o "grande antagonista" de Mário Soares (confessou mais tarde o próprio Soares) no Congresso da fundação, em Bad Münstereifel, na Alemanha.

Mário Mesquita apresenta, neste livro, uma entrevista que fez ao historiador Manuel de Lucena (então investigador do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris) e uma mesa-redonda que, destinada a ser publicada no República, foi cortada pela censura. Nela participaram quatro oposicionistas exilados em Genebra: António Barreto, José Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo e Valentim Alexandre. A ideia inicial do livro era bem mais ambiciosa, pretendendo publicar muitas outras entrevistas feitas por Mesquita a figuras da oposição democrática. Os tempos, porém, não facilitaram a concretização do projeto, mas o seu autor, ainda assim, não desistiu e publicou-o em formato reduzido, na Assírio & Alvim.

Nem por isso o livro deixou de ser um testemunho político contra o Regime, traçando um retrato contundente da sociedade portuguesa através dos olhares atentos dos vários entrevistados. Mas significou também a afirmação de um tipo de jornalismo alternativo, que a ausência de liberdade de expressão e o aparelho censório impediam que se praticasse na imprensa nacional. Mário Mesquita, com extrema lucidez e já bem consciente do papel dos jornalistas e do jornalismo na sociedade (e do contributo que podiam dar para a mudança), dá disso nota: "Estes textos indicam um tipo de jornalismo que me parece necessário praticar, neste momento, em Portugal". O livro dá lugar à reflexão, ao questionamento e ao debate, marcas tão expressivas da vida e da ação do seu autor.

Tudo isto fez com que, quatro meses após a publicação, fosse interrogado pela polícia política, primeiro nas instalações da António Maria Cardoso, em Lisboa, e depois em Caxias. A questão mais problemática prendia-se com a entrevista a Manuel de Lucena, "um marxista convicto", que, ao "defender a independência do Ultramar", poderia estar a incitar "à prática de crimes contra a segurança do Estado", segundo o ofício da Direção-geral de Informação. O livro chega a ter ordem de apreensão, mas o processo instaurado contra o seu autor acaba por ser arquivado por falta de elementos de prova, dias antes do Golpe das Caldas.

Agora que se completam 50 anos da publicação deste primeiro livro de Mário Mesquita, evoca-lo é lembrar o seu percurso e legado na luta pela liberdade e pela democracia em Portugal. Em tempos de popularidade passageira, de política-espetáculo, de propagação de demagogia e de populismos que ameaçam as democracias, o exemplo de alguém que viveu uma vida que personifica o oposto de tudo isso, surge como um alerta e uma inspiração. Este Portugal Sem Salazar, cuja capa exibe orgulhosamente o nome de Mário Mesquita, é um testemunho histórico de uma época passada, que nos ajuda - talvez hoje mais do que nunca - a pensar sobre ela, pensando, simultaneamente, numa outra época que é a presente. Por isso, nestes dias em que nos confrontamos com gestos que ofendem a memória dos que deviam honrar, procurando justificar o injustificável e tirar da história quem dela nunca sairá, a melhor resposta é aquela que é ilustrada com um exemplo. Hoje, simbolicamente um ano após a sua morte inesperada, o exemplo de Mário Mesquita continua a ser a melhor resposta. E é também por isso que ele nos faz tanta falta.

Professor Universitário

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