O estranho caso do esfaqueador druso
Quando alguém quer descrever a complexidade da sociedade israelita pode sempre relembrar que há judeus que não combatem pelo Estado Judaico (os ultraortodoxos), enquanto há árabes que o fazem (os drusos). Na realidade, os drusos até nem são os únicos árabes que se alistam no exército israelita, pois também os beduínos têm tradição de se voluntariar. Contudo, graças a um acordo entre o governo e a liderança drusa que data da década de 1950, os homens da comunidade prestam serviço militar obrigatório e são muitos aqueles que ascenderam a altos cargos nas forças armadas. A grande lealdade ao Estado de Israel, que vem desde o momento da independência, reflete-se numa integração mais bem conseguida do que a dos restantes árabes israelitas, sejam eles muçulmanos ou cristãos, descendentes dos palestinianos que em 1948 ficaram dentro das fronteiras do novo país. Há drusos com carreiras de sucesso, por exemplo, na diplomacia, e conheço um antigo número dois da embaixada israelita em Portugal que é hoje embaixador num país latino-americano.
Confesso, pois, a surpresa total quando surgiu a informação de que um atacante em Haifa, que matou à facada uma pessoa e feriu várias outras, era um druso. O xeque Muafak Tarif, líder espiritual dos drusos israelitas, deu já as condolências à família da vítima mortal, relembrou que foram outros membros da comunidade que tentaram parar o ataque, e que o terrorismo sempre foi combatido pelos seguidores desta fé que nasceu há mil anos de uma cisão no islão. Nahed Hazem, presidente da câmara de Shfar’am, onde vive a família do atacante, veio já dizer que este sofria de esquizofrenia, e tinha recentemente regressado de uma estadia na Alemanha, país onde nasceu, daí a imprensa ter identificado o autor do atentado em Haifa como uma israelo-alemão. Também o pai declarou que Jethro Shaheen, de 20 anos, sofria de problemas mentais.
Para Israel, a lealdade dos dois milhões de árabes israelitas é vital, e a verdade é que têm sido raros os casos de envolvimento em terrorismo, com sondagens a mostrarem que uma maioria repudiou completamente o massacre do Hamas a 7 de outubro de 2023. Aliás, pelo menos 20 árabes israelitas foram mortos durante a vaga terrorista, e vários outros foram levados como reféns para Gaza.
O caso dos drusos, porém, é mesmo historicamente especial, e por isso a importância de entender o que se passou na estação de autocarros de Haifa. Apesar dos gritos de “Allahu Akbar”, foi um ato de uma pessoa com problemas mentais? Há outras pistas a seguir, relacionadas com a experiência de vida na Alemanha?
Nos últimos tempos, muito se tem falado desta aliança entre os judeus e os drusos, especialmente depois do Hezbollah, no ano passado ter atingido a aldeia de Majdal Shams, matando 12 crianças que jogavam futebol. A solidariedade israelita com essa aldeia drusa dos Montes Golã foi total. E quando visitei o local, em janeiro, conversei com o pai de uma das vítimas, que me contou que mantinha o passaporte sírio (os Golã foram conquistados em 1967 e anexados em 1981), mas que a mulher e os filhos já eram formalmente cidadãos de Israel. Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, que vem em crescendo o número de drusos dos Golã que pedem a cidadania israelita, algo que evitaram durante décadas, preferindo manter a lealdade ao Estado, tal como os drusos israelitas mantêm em relação ao Estado de Israel e os drusos libaneses ao Líbano. Contando com os 25 mil drusos dos Golã, a comunidade terá 150 mil pessoas em Israel. No total, o povo druso, com a religião aqui a ser sinónimo de etnia, contará com um milhão de pessoas no Médio Oriente.
A queda do regime dos Assad na Síria, com o triunfo de uma aliança de grupos jihadistas, tem levado Israel a intervir de várias formas, desde a destruição de bases militares, até à recente proclamação do objetivo de desmilitarizar o sul do país vizinho, e criar uma zona-tampão junto dos Golã. As forças armadas israelitas, segundo fontes oficiais, estarão mesmo prestes a proteger cidades drusas ameaçadas pelos jihadistas, como Jaramana, a Sul de Damasco. Já durante a guerra civil síria, em momentos de dramático cerco de grupos jihadistas a aldeias drusas, chegou a haver apelos para intervenção de Israel.
Voltando ao estranho caso do esfaqueador druso, que foi morto no local do atentado, é importante para Israel e para a comunidade drusa apurar o que de facto esteve por trás do ataque, que o Hamas celebrou, mas não reivindicou. E para relembrar uma vez mais como é complexa a sociedade israelita, acrescento que o morto em Haifa chamava-se Hassan Karim Dhamshe, um cidadão árabe de Israel.
Diretor adjunto do Diário de Notícias